terça-feira, abril 22, 2025

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Brasileiros denunciam xenofobia no sistema prisional português


No início do mês, Opera Mundi publicou uma matéria sobre a morte de um imigrante brasileiro nas dependências do Sistema Prisional do Linhó, em Portugal, conhecido como o “Carandiru de Portugal”. Nesta terça-feira (25/03), nossa reportagem conversou com Michele Sousa, mãe de Gabriel Pereira de Sousa, que revelou detalhes sobre o falecimento do seu filho.

Segundo as autoridades portuguesas, a causa da morte só será elucidada após o resultado de uma autópsia ainda sem data marcada. Os investigadores dizem suspeitar de infarto ou suicídio.

A Opera Mundi, Michele contou que seu completaria 28 anos no próximo mês de maio. Ela vive na Espanha e disse que só foi comunicada pela Embaixada do Brasil quase uma semana depois do ocorrido. Ela também afirma que até hoje não teve acesso aos detalhes do processo criminal de Gabriel e que o governo brasileiro vai solicitar a consulta para compreender melhor a situação. Contudo, seu advogado explicou que o documento será disponibilizado dentro de um mês, alegando que em Portugal “tudo é muito lento”.

A cremação do corpo de Gabriel está marcada para esta quinta-feira (27/03). A brasileira, que atualmente trabalha fazendo serviços de limpeza, teve que recorrer a um empréstimo de 3,5 mil euros para pagar os serviços funerários. A Embaixada comunicou não possuir orçamento para essa ajuda financeira. “Preciso trabalhar muito, porque não tenho esse dinheiro guardado”, explicou.

José Moreira, responsável pela comunicação da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), disse à reportagem que o corpo de Gabriel foi encontrado na cela pelos guardas de vigilância e que os serviços clínicos do estabelecimento prisional, como a Guarda Nacional Republicana e a Polícia Judiciária, foram imediatamente acionados. Em nota, o Ministério Público confirmou a instauração do inquérito investigativo.

Sem comunicação

Michele Sousa conversou com Gabriel pela última vez há um ano, através das redes sociais, quando o filho forneceu um telefone para que ele pudesse explicar melhor o motivo pelo qual havia sido preso.

Entretanto, a brasileira afirma que nunca conseguiu falar com ele pelo Sistema Prisional do Linhó e que a instituição nunca facilitou nada, nem mesmo as informações sobre a morte do filho.

“Ele falou que tinha algo a ver com drogas, mas não explicou muito. Para a irmã, comentou que tinha pego cinco anos de prisão e que já estava lá há um ano, mas realmente não sabemos os detalhes. Mas o Gabriel sempre foi muito saudável. Se estivesse com algum problema psicológico, deveria haver um acompanhamento médico lá dentro, não? E se tinha alguém na cela com ele, por que a pessoa não gritou ou não pediu ajuda?”, questionou.

Arquivo pessoal
Michele e seu filho Gabriel em Barcelona, na Espanha

De Goiás para o ‘Carandiru de Portugal’

Antes da mudança para a Europa, Michele Sousa, de 46 anos, vivia em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital. Ela deixou o Brasil pela primeira vez em 2003 para trabalhar em Valença do Minho, norte de Portugal. A decisão de migrar aconteceu após o falecimento precoce do pai de Gabriel. “Na época, ele morreu e me deixou com três crianças para criar. Eu queria comprar uma casa e dar uma vida melhor para eles”, contou.

Depois de três anos de trabalho intenso e exposta a uma realidade muito difícil, Michele regressou ao Brasil, mas não conseguiu encontrar uma estabilidade financeira. Foi aí que apareceu outra oportunidade, dessa vez na Espanha, onde reside desde 2007.

“Em Goiânia eu não tinha nem casa para viver, porque morava com a minha mãe. Deixei meus três filhos com ela e fui para a Espanha juntar dinheiro. Em 2015, finalmente consegui alugar um apartamento e trazê-los para cá”, disse.

Michele lembra que o filho era muito inteligente e se esforçava para aprender as coisas. Ele chegou a frequentar uma escola em Barcelona, onde aprendeu o espanhol e o catalão. Porém, a burocracia na regularização dos documentos começou a dificultar a procura por trabalho, fazendo com que Gabriel fosse para Portugal. A princípio, ele ficou em Valença do Minho, mas depois foi para Viana do Castelo, e em seguida para a Cidade do Porto.

“Ele trabalhou em uma fábrica de pescados e na construção civil. Até então, eu tinha um pouco de contato com ele, mas fomos nos distanciando porque nós brigávamos muito. Ele era muito cabeça dura e as nossas ideias não batiam”, disse emocionada enquanto relembrava das palavras do filho. “Um dia, ele me disse: ‘mãe, pode ficar tranquila que daqui em diante eu me viro sozinho, já sou maior de idade. A senhora fez tudo o que podia por mim. Agora chega, eu vou fazer a minha vida’”.

A última notícia que Michele teve sobre o filho antes da prisão foi através de uma amiga que vive em Évora. “Ela contou que ele estava super bem, trabalhando e até pagando um seguro para tratamento dentário. Ele tinha uma coisa com boca, morria de medo de ficar com os dentes estragados. Era muito vaidoso”, recordou.

Apesar da dor, a mãe de Gabriel diz que tenta se manter forte diante dos outros dois filhos. Segundo ela, ambos estão em estado de choque com a notícia da morte do irmão. “A minha mãe ainda não sabe. Ela está muito doente e pode não aguentar”, desabafou.

Michele garante que irá até o fim para saber o que de fato aconteceu com o seu filho e conta com o apoio da Embaixada do Brasil em Lisboa, que se disponibilizou a cuidar do caso para esclarecer se realmente houve negligência do Estado português. A brasileira reforçou que todos podem cometer erros, mas o direito à dignidade humana também deve ser respeitado.

“Mesmo que ele não esteja mais aqui, quero ficar em cima disso. Se for preciso eu ir para Portugal no mês que vem, quando sair o laudo, eu vou dar um jeito. Já deixei muitas coisas passarem na minha vida, mas, dessa vez, não vou deixar. Não desejo que nenhuma mãe passe pelo que eu estou passando”.

Torturas e injustiças

Depois da publicação da reportagem sobre o “Carandiru de Portugal”, o movimento Vida Justa realizou um protesto na porta do Estabelecimento Prisional do Linhó no último sábado (22/03). Os manifestantes cobraram do sistema penitenciário respostas referentes à situação degradante no local e ao péssimo tratamento que é dado aos reclusos em outros presídios portugueses.

Além do caso de Gabriel, também mencionaram o de Auricélia Damasceno, brasileira que revelou a Opera Mundi ter vivido uma experiência traumática e complexa com a polícia e o sistema prisional português. Ela foi vítima de violência, sofreu diversas violações de direitos e ficou presa no Estabelecimento Prisional de Tires por mais de cinco anos devido a um crime que, segundo ela, não cometeu.

Natural de Colombo, no Maranhão, ela disse à reportagem que enfrentou condições desumanas, como tortura, espancamento e fome, além de ter passado por tentativas de homicídio, e que chegou a pensar o suicídio em um momento de maior desespero. Auricélia também acusa o Estado português por ter sofrido uma prisão arbitrária em frente à Embaixada do Senegal, na Avenida da Liberdade, umas das mais famosas do país.

“Fui presa injustamente e tive que cumprir cinco anos e oito meses por um crime que não cometi. Fui condenada supostamente por ser cúmplice de um crime, e somente eu que tive que pagar por isso, quem cometeu o crime não pagou. Tenho três filhos aqui e já processei o Estado. Também entrei com processo no Tribunal Europeu há quase dois anos. Estou aguardando o resultado dessa indenização”, explicou.

Stefani Costa
Faixa do movimento Vida Justa protesta contra condições desumanas nas prisões de Portugal

‘Máquina que alimenta a fome e a doença mental’

Auricélia viveu parte da sua vida em São Paulo, cidade brasileira que abrigou o Carandiru, um dos complexos prisionais mais violentos do mundo. Sua história também revela graves problemas no sistema prisional português que, de acordo com ela, perpetua o isolamento e a marginalização. Ela deixou a prisão em 2014.

“Vejo o sistema prisional em Portugal como uma máquina que alimenta a fome e a doença mental. Ao sair, não há ressocialização. Sinto que é uma destruição total, pois a gente perde todos os vínculos. Sem apoio familiar ou amigos, é fácil cair nas drogas, e mesmo quem não é usuário acaba se perdendo nas ruas”, desabafou.

Ela conta que testemunhou a morte de muitas pessoas e que sempre esteve ciente de que várias foram assassinadas. Espancamentos eram comuns na prisão de Tires, e as práticas de xenofobia e racismo contra brasileiras eram constantes. Auricélia também explica que a ausência de câmeras em alguns pontos tornava impossível comprovar qualquer incidente. Se uma guarda a agredisse, não haveria como provar, e as outras reclusas não confirmariam a sua versão por medo de represálias.

“Fazer a queixa pode resultar em complicações, como a transferência para outra cadeia, porque as guardas se comunicam e são capazes de criar narrativas negativas sobre comportamentos, gerando uma perseguição contra pessoas específicas”, denuncia.

Carta da ONU

Embora tenha havido um grande suporte, a brasileira reflete que muitos que saem da prisão não retornam só porque querem, mas pela opressão e falta de investimento do Estado, que prejudica ainda mais o psicológico e ignora as regras já estabelecidas. Auricélia afirma ainda que as poucas vagas de emprego disponíveis são preenchidas conforme a escolha que é feita pelos próprios guardas através do que ela chama de “sistema de indicação”.

A única coisa que a manteve longe de situações piores foi o cumprimento do direito à educação, garantido pela Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).

Em 2024, o relatório da DGRSP portuguesa informou ter recebido das entidades judiciais um total de 175 solicitações para execução de medidas em centro educativo. Este número representou 8,11% do total de 2.157 solicitações para execução de medidas na área tutelar educativa.

Além disso, Auricélia reforça que as regras no sistema prisional também são manipuladas: cada guarda age de maneira diferente, sem seguir as diretrizes do Estado. Isso resulta em violação dos direitos básicos das pessoas aprisionadas; não recebem alimentação adequada e têm o acesso a produtos de higiene negado. As famílias são forçadas a enviar dinheiro para suprir essas necessidades. Porém, esse valor acaba financiando um sistema que permite a entrada de drogas.

“Portugal possui uma das maiores taxas de reclusão e de penas longas da Europa, e as condições nas prisões são deploráveis, sem fiscalização adequada. Assim, presidiários e presidiárias vivem em uma comunidade isolada. O sistema prisional também recebe uma cota da União Europeia, do Estado português e dos depósitos realizados quinzenalmente pelas famílias. E então eu pergunto: para onde esse dinheiro vai?”, finaliza com tal indagação.



Fonte: Opera Mundi

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