A indústria cinematográfica dos Estados Unidos está entre os principais ramos de ascendência do lobby sionista. Não se trata de teoria da conspiração. O cinema norte-americano foi construído com enorme participação sionista, expandida ao longo de décadas, resultando em forte influência sobre o conteúdo das produções. Todos os anos, por exemplo, são lançados dezenas de filmes que narram a vil perseguição dos nazistas contra os judeus.
Qualquer fã de cinema, mesmo com pequeno repertório, tem duas ou três obras na ponta da língua. “A lista de Schindler”, “O pianista” e “Bastardos Inglórios” – todos ótimos filmes vencedores do Oscar – costumam estar no topo da lista. As plataformas de streaming, como Netflix, também exibem vasto catálogo sobre o tema.
(Foto: No Other Land / Reprodução)
Embora o Holocausto seja dos eventos mais repugnantes, praticado pelo regime mais odioso do século XX, é inequívoco que outras carnificinas não recebem a mesma atenção. Poucas são as exceções, que apenas confirmam a regra. O genocídio do povo judeu ganha infinitamente maior destaque, entre outras razões, pelo poder do lobby sionista.
Torna-se inusitada, nesse contexto, a vitória no Oscar de “Sem chão” (No other land, 2025), documentário que expõe a tirania do Estado de Israel contra os palestinos. O filme mostra a luta da comunidade palestina de Masafer Yatta, na Cisjordânia, que há décadas resiste à sua expulsão pela colonização sionista. A direção é de um improvável coletivo de palestinos (Basel Adra e Hamdan Ballal) e israelenses (Yuval Abraham e Rachel Szor), dando vida a uma obra filmada antes de 7 de outubro de 2023, demonstrando que o conflito antecede, e muito, o ataque liderado pelo Hamas.
A comunidade retratada é formada por pequenas aldeias de agricultores, famosa por suas casas nas cavernas, e há séculos habitada por palestinos. Desde a Guerra dos Seis Dias (1967) está ilegalmente ocupada por Israel. Nos termos dos Acordos de Oslo (1993), integra a área c, submetida ao controle militar e civil israelense.
A situação local se agravou quando o regime sionista, em 1980, declarou a região como despovoada e a fixou, mais tarde, como Zona de Tiro 918, destinada a treinamento militar. Com bases nessas classificações, o governo israelense decidiu expulsar os palestinos daquelas terras, enfrentando longa resistência, ainda que pacífica.
A história é narrada pelas lentes do palestino Basel Adra. Seguindo os passos de seu espirituoso pai, talvez o personagem mais interessante deste filme, ele luta contra a expulsão de sua comunidade, denunciando publicamente os abusos do regime sionista. De forma corajosa, registra os ataques em sua câmera e os publica online, na tentativa de chamar a atenção internacional. Daí conhece Yuval Abraham, outro jovem jornalista, porém judeu e israelense, que se interessa pela causa e a ela se junta, sendo acusado de traição por sionistas inconformados com sua opção.
Nascidos na mesma região, mas separados por cercas e soldados, Adra e Yuval têm vidas completamente diferentes. Para o palestino, a infância acabou cedo. As crianças, em sua comunidade, desde muito pequenas vivem a violência e o abuso promovidos pelo Estado de Israel. Rapidamente ganham consciência política e passam a participar dos enfrentamentos. Assim, com poucos anos de idade, Adra acompanha a resistência de sua família e vizinhos contra a opressão sionista.
As imagens da época, registradas em vídeos caseiros antigos, são melancolicamente intercaladas com as gravações atuais, que replicam a violência do passado. O filme provoca incômodo profundo diante de uma injustiça flagrante que se arrasta há tantas décadas, sem solução.
Yuval cresceu, por sua vez, como um típico judeu israelense. Pôde se formar e encontrar bons empregos. Foi livre para decidir com o que trabalhar, enquanto Adra, formado em Direito, só encontra oportunidades na construção civil. “Sou mão de obra barata”, desabafa.
A relação entre os dois tem certa tensão. Abraham percebe-se separado de Adra e dos demais palestinos não apenas por alguns poucos quilômetros com cercas, muros e postos militares, mas pelo sistema étnico-racial de apartheid forjado pelo sionismo e retratado no documentário.
A tirania sionista é exposta numa combinação entre o real e o sensível, intercalando cenas de violência direta com outras do cotidiano simples das famílias. Juntas, as imagens revelam não só a humanidade do povo palestino, tão apagada pela propaganda israelense, mas também a sabedoria e a beleza da resistência, acumulada por décadas e transmitida de geração a geração. Também se destaca a força das mulheres muçulmanas. Estereotipadas como submissas pelo ocidente, o filme mostra, em verdade, como as palestinas são participantes ativas na luta contra a ocupação.
Em determinados momentos, bastou aos diretores deixar a câmera ligada, de tão flagrante as injustiças a que são submetidas aquelas aldeias. E, de fato, muitas das cenas são espontâneas, registrando in actu a absoluta crueldade das ações do regime sionista. Mulheres, crianças, idosos e até deficientes são forçados por soldados e agentes para fora das casas, imediatamente demolidas, quase sem tempo para retirar seus pertences. Poços de água são concretados. Galinheiros e currais de animais, destruídos. Nem parquinhos e escolas são poupados. As cenas são grotescas e revoltantes. O objetivo notório é inviabilizar a vida local e quebrar a resiliência dos palestinos.
Mas não são apenas tratores que aterrorizam a comunidade. Os moradores sofrem com buscas, apreensões e prisões abusivas realizadas pelo exército colonial. Todos aqueles que ousam erguer a voz, como o próprio Adra e seu pai, podem ser presos a qualquer momento, desrespeitando os mais comezinhos direitos humanos.
Mais assustadores ainda são os colonos israelenses. Mascarados e com armas em punho, tal qual hordas fascistas, atacam as aldeias, com a conivência e proteção das forças armadas. Um dos diretores, o palestino Hamdan Ballal, recentemente foi agredido e sequestrado por um destes grupos, e libertado apenas depois de grande repercussão internacional.
“Sem chão” não deixa dúvidas: Israel é um regime de apartheid. O seu grande feito, contudo, não se reduz a escancarar o sionismo, ideologia fundante do Estado de Israel. O documentário também prova como esta aliança improvável, inicialmente permeada de desconfianças, mas que aos poucos e timidamente se transformou numa cativante amizade, pode ser poderosa. Objeto de ódio e medo dos opressores, o companheirismo de Adra e Abraham prova que a união entre judeus e palestinos, para a construção de um Estado único e democrático, livre e igual para todos, do rio ao mar, pode encerrar a longa tirania.
(*) Susana Botár é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pelo mesmo programa.
Fonte: Opera Mundi