quarta-feira, abril 23, 2025

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O tarifaço de Trump: caricatura do passado, parteira involuntária do futuro


Os Estados Unidos se tornaram um desfile de ideias pirateadas de um museu. Se a geopolítica de Biden e Trump repetem os anos 1970, a estratégia de tarifaço também não é nova: encena o que se viu naquele na virada do século XIX para o XX, quando a tarifação foi parte central do giro protecionista iniciado pelo presidente William McKinley, a quem Trump citou elogiosamente na posse.  

Assim, Trump retrocede ao momento mais glorioso, e derradeiro, dos Gilded Years, o período do pós-Guerra Civil, vez ou outra romantizado pela direita americana: o crescimento pau na máquina, com a imigração branca – mas já sem as benesses do começo da colonização – coexistindo com a segregação dos negros, o massacre dos indígenas e a participação americana no sistema imperialista.

Para além das chagas sociais, convenientemente sonegadas da lembrança coletiva daquele tempo, a economia também não foi exatamente bem: o republicano McKinley assumiu o país já na esteira da crise de 1893, dando um verdadeiro cavalo de pau por meio de uma política tarifária de cunho protecionista, enquanto lançava mão de uma estratégia expansionista, inicialmente negada, indo para cima da Espanha.





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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anuncia tarifas globais durante evento na Casa Branca. (Foto: White House / Abe McNatt)
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anuncia tarifas globais durante evento na Casa Branca.
(Foto: White House / Abe McNatt)

O momento americano, contudo, agora é outro. Diferentemente da jovem potência que crescia, se abria e cujo sistema político, mesmo de maneira sórdida, se permitia fazer reformas e inovar, o país hoje vive à sombra de uma percepção generalizada de decadência – inclusive de ultrapassagem pela China no campo da hegemonia e da tecnologia. Trump está aplicando um golpe em um sistema que, em tese, ele ainda hegemoniza e lidera.

Os efeitos dessa tarifação produziram uma explicável inquietação. De um lado, elas rompem com o bloco central do imperialismo, opondo os Estados Unidos aos seus leais e abnegados sócios minoritários, mas também erode um sistema de que parte do Sul Global soube se utilizar para se desenvolver – apesar das contradições todas; a globalização foi remédio que virou vício, para chineses e russos, mas agora a nova situação pode os tirar da inércia.

Os Estados Unidos, de beneficiados ingratos da globalização a seus coveiros

A globalização não enfraqueceu a economia americana. Segundo o Banco Mundial, ela ficou até relativamente maior que a de seus parceiros da América do Norte:  entre 1992 e 2023, por paridade de poder de compra, o PIB per capita do México caiu de 35% para 28% do americano; já o Canadá foi de 83% para 76% – comparações com Alemanha, França e Japão, no mesmo período, demonstram algo semelhante.

O que não aconteceu é a conversão dessa acumulação de capital em qualidade de vida. De melhor lugar para se viver em 1992, os Estados Unidos caíram para a 20ª posição em 2022 no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em outras palavras, a decadência é social e, só a partir daí, econômica. Seguidos presidentes dos dois grandes partidos foram incapazes de reverter esse enriquecimento mal distribuído.

Nesse contexto, a indignação social nos Estados Unidos, em um contexto de segregação racial, foi instrumentalizada nas guerras culturais, enquanto democratas e republicanos concordavam no essencial, até 2016. A ruptura trumpista usou e radicalizou do ressentimento da parte mais pobre da maioria branca, que muitas vezes caiu de status social e foi manobrada a odiar negros, hispânicos, mas também outras minorias. 

O discurso de Trump aponta que a crise americana é fruto da desindustrialização, mas isso ignora o fato de que a realocação do parque industrial do país foi planejada: controlando a produção de tecnologia, e se centrando no setor de serviços, os problemas americanos começam não pela China sediar as fábricas do mundo, mas sim por ter passado a também desenvolver tecnologia e seu setor de serviços – fechando o caminho para as Big Techs americanas.

Esses vastos excedentes acumulados nas últimas décadas não construíram, da mesma forma, um setor de ponta tecnológico eficiente, mas sim um cartel de novos barões ladrões que, por sinal, financiaram a campanha de Trump – e que agora integram o governo dele. Tudo isso com o objetivo de obter medidas protecionistas para, assim, contornar sua defasagem em termos de inovação, preço e qualidade. E talvez abrir a fórceps mercados orientais.

Apesar do déficit comercial físico – que nunca foi exatamente um problema –, estudiosos apontam os exorbitantes ganhos dos Estados Unidos no comércio digital. Isso, no entanto, só não é maior porque russos e, sobretudo chineses ousaram criar suas próprias redes sociais e aplicativos e, inclusive, têm avançado enormemente nesse campo. Enquanto Trump vocifera contra os déficits, por outro lado ignora que pode ameaçar esse superávit. 

Portanto, o argumento trumpista é de que a economia não cresceu o suficiente nas últimas décadas, não que ela concentrou renda e isso produziu, dentre outras coisas, ineficiência econômica. Omitir isso, obviamente, é um ponto muito importante do projeto político dele, o que é uma falácia sem tamanho. Na verdade, Trump dobra a aposta e vai a fundo no equilíbrio desequilibrado do qual os Estados Unidos tanto se beneficiam, ameaçando-o.

Por que as tarifas “deram certo” no passado, mas são uma estratégia temerária hoje em dia?

O leitor atento vai lembrar que dissemos que a geopolítica trumpista é, sobretudo, repetição: Joe Biden tentou repetir o gesto ardiloso de Jimmy Carter nos anos 1970 ao atrair os russos para um atoleiro, mas terminou ele mesmo atolado – enquanto o ressurreto Donald Trump agora empurra Biden para o papel de Lyndon Johnson, enquanto se posiciona como um novo Richard Nixon para resolver o imbróglio russo. Sim, nas tarifas ocorre algo parecido.

Aqui, como na geopolítica, a repetição do passado por Trump é regra, só que a referência é mais longínqua. Trump expressamente citou McKinley, inclusive como responsável pelos êxitos econômicos de Ted Roosevelt, seu sucessor, também republicano. Ali, os Estados Unidos era um país permeado de contradições sociais, mas também era um país jovem, aberto à inovação e novas ideias enquanto recebia imigrantes de uma Europa em convulsão.

McKinley tinha o desafio de proteger sua indústria das potências europeias, tendo uma capacidade instalada grande, enquanto as cadeias produtivas eram muito mais simples – nem por isso o governo americano abriu mão da mão de obra imigrante como forma de ampliar sua força de trabalho naquele contexto. Sob a presidência de McKinley (1897-1901), o número de imigrantes ganhando residência permanente no país mais do que dobrou

Nem é preciso dizer que nos últimos 120 anos a economia se tornou mais complexa, e a divisão internacional do trabalho passou a comportar etapas que inexistiam – inclusive pela forma que se produz e como se produz. Obtenção de matéria-prima, elaboração, manufatura e comercialização podem ocorrer em quatro países diferentes. A estipulação de tarifas contra um distante Vietnã atinge em cheio as plantas industriais da americana Nike.

É claro, a Nike poderia passar a produzir nos Estados Unidos. Mas para isso, ela teria de ter capacidade instalada suficiente – ou os recursos para construí-la rapidamente – no território americano, considerando ainda ter a mão de obra necessária, a custos que permitam um preço final razoável – levando em consideração, ainda, que os fornecedores de matéria-prima para simples calçados não estão nos Estados Unidos, mas em algum país tarifado.

Só é possível imaginar que isso funcione, como já aconteceu em Trump I, em ramos como a siderurgia, cujo processo é simples e para o qual os Estados Unidos possuem capacidade instalada. Uma tarifação gigantesca e amplíssima, com alíquotas arbitrárias, levam a impactos imprevistos, uma vez que a dinâmica comercial entre os Estados Unidos e um país desenvolvido é um verdadeiro universo – tanto pelo seu tamanho quanto pela complexidade.

O resultado nos últimos dias foi pânico nos mercados, queda nas ações e uma desvalorização atípica do dólar pela queda de fluxos de capitais para os Estados Unidos – o que é o pior cenário possível, em termos inflacionários, pois o normal, em um processo como esses, seria a valorização do dólar, o que poderia compensar o aumento gerado pelas tarifas – mas a dose cavalar produziu um fenômeno de outra ordem.

Epílogo: o mundo pós-americano precisa nascer

O dólar como moeda universal, junto com o mercado americano como um grande motor da demanda global, criaram o mecanismo que Joseph Halevi e Yanis Varoufakis chamaram de Minotauro Global. Os grandes déficits gêmeos americanos, contrariando o que era regra entre as potências, criaram um elemento central do mundo globalizado. Isso, contudo, abriu espaço para o impossível: produzir espaço para países como a China ou Rússia se reorganizarem.

Ao contrário dos europeus, do Japão ou dos países da América do Norte, os chineses souberam operar na globalização e diminuíram sua diferença relativa para as grandes potências. A Rússia, a partir do século XXI, igualmente. Mas tanto Pequim quanto Moscou se viram na peculiar condição de se viciarem no remédio que as curou – e hoje precisam dar um novo salto, o que vai bem além de iniciativas como o Brics.

Embora Donald Trump tenha iniciado a guerra comercial em 2017, lembremos que antes dele Barack Obama já considerava meios de isolar a China e que, nos últimos anos, Joe Biden reafirmou e radicalizou a doutrina de sanções americanas, transformando o dólar, definitivamente, em uma arma de guerra no episódio ucraniano. Os russos foram obrigados pela necessidade a dar saltos que já poderiam ter dado há anos.

Novamente, como se vê desde a crise mal resolvida de 2008, a questão global demanda não uma nova hegemonia, mas a construção de mecanismos multipolares de gestão econômica – a persistência do dólar como moeda dos Estados Unidos e, simultaneamente, moeda global se mostra cada vez mais catastrófico. Neste exato instante, isso é uma confusão inclusive para o próprio capital americano. 

Isso impele também o Brasil a se mover, depois de ter passado os últimos anos ora tomando o lado do trumpismo, com Bolsonaro, ora com um alinhamento aos democratas. Nenhuma dessas posições satisfaz as demandas brasileiras, ainda mais em um cenário como esse – muito embora um certo viralatismo nacional comemore a aplicação de tarifas “apenas” de 10% que vem a se somar com as do aço e do alumínio.

Essa situação apocalíptica permite ao Brasil se mover para além dos limites estanques a que os democratas submetiam o país, o que talvez poderia dar a contrapartida de evitar alguém como Bolsonaro no poder, mas não impediu a chegada silenciosa de um Tarcísio de Freitas – que, no entanto, já apareceu com o boné trumpista, embora não tenha se pronunciado sobre as tarifas que afetam a indústria siderúrgica paulista.

Os dois modelos de Trump, McKinley e Nixon, terminaram mal. O primeiro foi assassinado por um anarquista, o segundo se viu obrigado a renunciar depois do escândalo Watergate. O protecionismo de McKinley, apesar de funcional e, por isso, uma moda à sua época, conduziu o mundo à Primeira Guerra. É perfeitamente possível construirmos uma alternativa a essa via suicida, mas lembremos: a História ensina, o que ela não faz é perdoar.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.



Fonte: Opera Mundi

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