Há 47 anos, em abril de 1978, era fundado no Rio de Janeiro o jornal “O Lampião da Esquina“, o primeiro periódico LGBT de alcance nacional a circular no Brasil.
Publicado em plena vigência da ditadura militar, o jornal se destacou por abordar a temática LGBT de forma aberta, promovendo a aceitação e combatendo os preconceitos e estigmas prevalentes na sociedade.
“O Lampião da Esquina” se tornou um marco histórico para os movimentos civis LGBT no Brasil, contribuindo para a afirmação das identidades sexuais não normativas.
O veículo também se destacou por sua abordagem interseccional, afirmando-se como um periódico de esquerda, de oposição à ditadura militar — denunciando o racismo e a violência policial, apoiando as causas dos trabalhadores e das minorias.
A distensão e o ressurgimento da imprensa alternativa
Sufocada pela ditadura militar desde o golpe de 1964, a imprensa contra-hegemônica encontrou um ambiente mais propício para o seu florescimento em meados dos anos 70.
A censura do regime havia chegado ao ápice após a aprovação da Lei 5.520 e a promulgação do AI-5, que suspendeu as garantias constitucionais e pavimentou o caminho para o recrudescimento da repressão durante os “Anos de Chumbo”.
As medidas autoritárias, antes limitadas aos periódicos de oposição à ditadura, logo foram ampliadas para abarcar também os jornais liberais e conservadores, que se perfilavam ideologicamente ao regime.
O ambiente autoritário e a perseguição sistemática aos opositores começaram a alimentar o descontamento de vários setores da sociedade. Esse processo se agravou a partir do esgotamento do chamado “milagre econômico”, que foi seguido pelo achatamento dos salários e aumento da pobreza.
Reagindo à crise de popularidade da ditadura, o governo de Ernesto Geisel daria início à “distensão” — isso é, o processo de arrefecimento da repressão e das medidas restritivas, operado de forma gradual pelo próprio governo militar.
A ideia era promover uma “abertura política” controlada, que permitisse neutralizar as pressões da sociedade por mais liberdade, mas assegurando o controle estrito do regime sobre as instituições do Estado.
A revogação da censura prévia e o restabelecimento das garantias civis permitiu o fortalecimento dos movimentos sociais, que, por sua vez, se apoiavam na construção de uma imprensa alternativa para difundir suas ideias.
Os periódicos contra-hegemônicos se tornariam uma das principais plataformas de resistência à ditadura militar, abordando as perspectivas políticas e os temas que antes proibidos pela censura.
Uma série de veículos alternativos surgiriam como fruto desse contexto (“CooJornal”, “Movimento”, “Varadouro”, etc.), somando-se aos raros veículos preexistentes, que sobreviveram à perseguição do regime — caso do célebre “Pasquim”.
Surge “O Lampião da Esquina”
Um dos símbolos mais emblemáticos do ressurgimento da imprensa alternativa é o jornal “O Lampião da Esquina”. A criação do periódico é tributária do fortalecimento dos movimentos de liberação sexual e de contracultura, que tinham começado a gerar impactos sobre a sociedade brasileira ainda nos anos 60.
Apesar da repressão política do regime, que associava a liberdade sexual e as identidades sexuais não normativas à “subversão”, houve um aumento gradual da contestação das visões tradicionais sobre gênero e sexualidade. Aos poucos, a produção cultural, incluindo músicas, filmes, peças de teatro, passavam a abordar as temáticas LGBT de forma mais aberta e menos estigmatizada.
A ideia de criar o “O Lampião da Esquina” surgiu em 1977, após a visita do jornalista britânico Winston Leyland ao Brasil. Leyland era o editor do jornal “Gay Sunshine” — um dos periódicos pioneiros do movimento pela libertação sexual nos Estados Unidos. Ele também foi o fundador da Gay Sunshine Press, a primeira editora LGBT norte-americana.
Convidado por João Antônio Mascarenhas a realizar uma série de conferências no país, Leyland travou contato com militantes do movimento LGBT e intelectuais sensíveis às pautas da liberação sexual.
Inspirados pelo trabalho editorial de Leyland, um grupo de onze intelectuais gays se reuniu com o propósito de criar um jornal voltado às pautas da comunidade LGBT — um veículo destinado a dar voz às minorias silenciadas pelo regime militar e pelo conservadorismo da sociedade brasileira.
A reunião ocorreu na casa do pintor Darcy Penteado, e contou com a participação de João Antônio Mascarenhas, Aguinaldo Silva, Jean-Claude Bernardet, João Silvério Trevisan, Peter Fry, Adão Costa, Antonio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt e Gasparino Damata. Esse grupo formaria o conselho editorial de “O Lampião da Esquina”.
Edição do jornal “O Lampião da Esquina”
Estrutura do jornal
“O Lampião da Esquina” foi concebido como um jornal em formato tabloide, de periodicidade mensal. Publicado pela Editora Lampião Ltda., o jornal era financiado por uma combinação de vendas, assinaturas, doações de colaboradores e contribuições dos próprios editores, muitos dos quais já tinham experiência em publicações alternativas.
A redação era formada por um grupo heterogêneo de intelectuais, artistas e ativistas políticos. Aguinaldo Silva, escritor e futuro autor de telenovelas, era o editor-chefe. João Silvério Trevisan, escritor e cineasta, contribuía com sua experiência literária e sua forte militância na causa LGBT.
Darcy Penteado, pintor e ilustrador, realizava as ilustrações — frequentemente com experimentações no campo da arte homoerótica. Jean-Claude Bernardet, crítico de cinema, trazia um olhar analítico sobre cultura e política. E Peter Fry, antropólogo, oferecia uma perspectiva acadêmica sobre sexualidade e identidade.
A sede do jornal ficava no Rio de Janeiro, mas a equipe era composta por colaboradores espalhados por todo o país. “O Lampião da Esquina” foi o primeiro periódico LGBT brasileiro a ter uma tiragem significativa (cerca de 15 mil exemplares a cada edição) e a conseguir ter alcance nacional.
A estrutura do jornal era organizada em colunas e editorias fixas, abordando uma série de temas, do noticiário político às manifestações culturais.
A seção “Cartas na Mesa” abria espaço para o diálogo com os leitores, que enviavam relatos pessoais, críticas e até pedidos de ajuda. Em “Esquina“, o jornal trazia notícias sobre o Brasil e o mundo, sempre com um olhar crítico sobre as ações do regime.
A seção “Reportagem” era dedicada às matérias de capa, que abordavam temas como discriminação no ambiente de trabalho ou a violência policial contra transexuais. Havia também a coluna “Bixórdia”, marcada pelo humor ácido e irreverente — quase sempre assinada por pseudônimos para garantir a segurança dos autores.
O “Lampião” também publicava resenhas culturais de temática LGBT, divulgando os livros de autores como Cassandra Rios e filmes como “O Beijo no Asfalto”, de Bruno Barreto. Por fim, o jornal produzia grandes entrevistas com personalidades LGBT ou figuras vinculadas à luta política e aos movimentos sociais — de Ney Matogrosso e Leci Brandão a Lula e Abdias Nascimento.
Um jornal plural e combativo
“O Lampião da Esquina” não se limitava a ser um veículo de informação. Ele pretendia ser um agente da transformação social, desafiando os estereótipos, os sensos comuns e os estigmas que eram predominantes na sociedade.
Tal intenção fica clara em seu editorial de estreia, publicado em abril de 1978, onde se lê: “É preciso dizer não ao gueto e, em consequência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como uma espécie de maldição.”
“(…) Para acabar com essa imagem-padrão, Lampião não pretende soluçar a opressão nossa de cada dia, nem pressionar válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não-reprodutividade uma sociedade petrificada na mitologia hebraico-cristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz”.
O veículo teve grande importância para a afirmação das identidades LGBT e para a articulação da defesa das pautas das minorias, além de se dedicar a combater estereótipos negativos, celebrar a sociabilidade homossexual e denunciar os comportamentos homofóbicos e a perseguição contra gays, lésbicas e transexuais.
“O Lampião da Esquina” não se limitava a às causas LGBT. Suas reportagens abordavam o racismo estrutural, a misoginia, a exploração dos trabalhadores e até questões ambientais como o desmatamento da Amazônia — uma editoria pioneira, em um tempo em que esses temas eram quase invisíveis na mídia tradicional.
A perseguição
A publicação de um jornal abertamente homossexual em um país sob ditadura militar, marcado pelo conservadorismo social, era um ato repleto de ousadia, coragem e riscos reais.
Mesmo com a censura abrandada pela distensão, o jornal permaneceu durante toda sua existência sob a vigilância do Centro de Informações do Exército e dos órgãos repressivos do regime.
“O Lampião da Esquina” foi alvo de uma série de inquéritos e investigações conduzidos pela ditadura, sob a alegação de “cometer atos atentatórios contra a ordem e o regime” e “ofender a moral e o pudor público”.
Vários dos editores do jornal forçam forçados a comparecer às sedes dos órgãos repressivos do regime para prestar depoimentos. A redação era constantemente submetida a ameaças e tentativas de intimidação.
Os órgãos de segurança da ditadura realizaram uma ofensiva contábil contra o jornal, produzindo uma devassa nos balanços de pagamento em busca de irregularidades. Também tentaram cortar suas fontes de financiamento, criando limitações para a receita publicitária e constrangendo eventuais anunciantes.
Além das ações do governo, o jornal também sofria constantes ameaças de grupos reacionários, tais como o Comando de Caça aos Comunistas — uma organização paramilitar responsável por uma série de ataques contra a esquerda, incluindo atentados a bomba e assassinatos.
Bancas de jornal que vendiam “O Lampião” se tornaram alvos frequentes de ataques, sendo depredadas ou incendiadas.
Encerramento e legado
A perseguição empreendida pela ditadura dificultou ainda mais a manutenção de “O Lampião da Esquina”. Como todo veículo da mídia alternativa, o jornal já sofria falta de recursos. A perseguição sistemática resultou na queda da tiragem, ao mesmo tempo em que a guerra jurídica travada contra o jornal impunha mais custos e desgaste.
O jornal também passou a sofrer com as divergências internas. Uma parte da equipe, agrupada em torno de João Silvério Trevisan, defendia a manutenção de uma linha política crítica e alinhada à esquerda. Outros preferiam uma abordagem menos partidária, buscando atrair um público mais diverso.
As tensões internas e as pressões externas levariam ao encerramento do jornal em junho de 1981. Ao todo, o jornal publicou 38 edições regulares e três edições extras.
Apesar de sua curta duração, o “O Lampião da Esquina” se consolidou como um dos grandes marcos do movimento LGBT no Brasil. Foi um dos primeiros veículos a tratar a homossexualidade como uma questão de cidadania, desafiando a visão preconceituosa e o conservadorismo da direita e a indiferença de alguns setores da esquerda.
A abordagem interseccional do jornal, conectando sexualidade, raça, gênero e classe social, foi também pioneira, antecipando um debate que somente começaria a se popularizar a partir dos anos 90. Por fim, o jornal teve um papel catalisador no movimento LGBT brasileiro, inspirando a criação de grupos de afirmação e iniciativas que auxiliaram a estruturar o ativismo LGBT no Brasil.
Fonte: Opera Mundi