quinta-feira, abril 24, 2025

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marco do movimento LGBT no Brasil


Há 47 anos, em abril de 1978, era fundado no Rio de Janeiro o jornal “O Lampião da Esquina“, o primeiro periódico LGBT de alcance nacional a circular no Brasil.

Publicado em plena vigência da ditadura militar, o jornal se destacou por abordar a temática LGBT de forma aberta, promovendo a aceitação e combatendo os preconceitos e estigmas prevalentes na sociedade.

O Lampião da Esquina” se tornou um marco histórico para os movimentos civis LGBT no Brasil, contribuindo para a afirmação das identidades sexuais não normativas.





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O veículo também se destacou por sua abordagem interseccional, afirmando-se como um periódico de esquerda, de oposição à ditadura militar — denunciando o racismo e a violência policial, apoiando as causas dos trabalhadores e das minorias.

A distensão e o ressurgimento da imprensa alternativa

Sufocada pela ditadura militar desde o golpe de 1964, a imprensa contra-hegemônica encontrou um ambiente mais propício para o seu florescimento em meados dos anos 70.

A censura do regime havia chegado ao ápice após a aprovação da Lei 5.520 e a promulgação do AI-5, que suspendeu as garantias constitucionais e pavimentou o caminho para o recrudescimento da repressão durante os “Anos de Chumbo”.

As medidas autoritárias, antes limitadas aos periódicos de oposição à ditadura, logo foram ampliadas para abarcar também os jornais liberais e conservadores, que se perfilavam ideologicamente ao regime.

O ambiente autoritário e a perseguição sistemática aos opositores começaram a alimentar o descontamento de vários setores da sociedade. Esse processo se agravou a partir do esgotamento do chamado “milagre econômico”, que foi seguido pelo achatamento dos salários e aumento da pobreza.

Reagindo à crise de popularidade da ditadura, o governo de Ernesto Geisel daria início à “distensão” — isso é, o processo de arrefecimento da repressão e das medidas restritivas, operado de forma gradual pelo próprio governo militar.

A ideia era promover uma “abertura política” controlada, que permitisse neutralizar as pressões da sociedade por mais liberdade, mas assegurando o controle estrito do regime sobre as instituições do Estado.

A revogação da censura prévia e o restabelecimento das garantias civis permitiu o fortalecimento dos movimentos sociais, que, por sua vez, se apoiavam na construção de uma imprensa alternativa para difundir suas ideias.

Os periódicos contra-hegemônicos se tornariam uma das principais plataformas de resistência à ditadura militar, abordando as perspectivas políticas e os temas que antes proibidos pela censura.

Uma série de veículos alternativos surgiriam como fruto desse contexto (“CooJornal”, “Movimento”, “Varadouro”, etc.), somando-se aos raros veículos preexistentes, que sobreviveram à perseguição do regime — caso do célebre “Pasquim”.

Surge “O Lampião da Esquina”

Um dos símbolos mais emblemáticos do ressurgimento da imprensa alternativa é o jornal “O Lampião da Esquina”. A criação do periódico é tributária do fortalecimento dos movimentos de liberação sexual e de contracultura, que tinham começado a gerar impactos sobre a sociedade brasileira ainda nos anos 60.

Apesar da repressão política do regime, que associava a liberdade sexual e as identidades sexuais não normativas à “subversão”, houve um aumento gradual da contestação das visões tradicionais sobre gênero e sexualidade. Aos poucos, a produção cultural, incluindo músicas, filmes, peças de teatro, passavam a abordar as temáticas LGBT de forma mais aberta e menos estigmatizada.

A ideia de criar o “O Lampião da Esquina” surgiu em 1977, após a visita do jornalista britânico Winston Leyland ao Brasil. Leyland era o editor do jornal “Gay Sunshine” — um dos periódicos pioneiros do movimento pela libertação sexual nos Estados Unidos. Ele também foi o fundador da Gay Sunshine Press, a primeira editora LGBT norte-americana.

Convidado por João Antônio Mascarenhas a realizar uma série de conferências no país, Leyland travou contato com militantes do movimento LGBT e intelectuais sensíveis às pautas da liberação sexual.

Inspirados pelo trabalho editorial de Leyland, um grupo de onze intelectuais gays se reuniu com o propósito de criar um jornal voltado às pautas da comunidade LGBT — um veículo destinado a dar voz às minorias silenciadas pelo regime militar e pelo conservadorismo da sociedade brasileira.

A reunião ocorreu na casa do pintor Darcy Penteado, e contou com a participação de João Antônio Mascarenhas, Aguinaldo Silva, Jean-Claude Bernardet, João Silvério Trevisan, Peter Fry, Adão Costa, Antonio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco Bittencourt e Gasparino Damata. Esse grupo formaria o conselho editorial de “O Lampião da Esquina”.

Via VICE/Wikipédia
Edição do jornal “O Lampião da Esquina”

Estrutura do jornal

O Lampião da Esquina” foi concebido como um jornal em formato tabloide, de periodicidade mensal. Publicado pela Editora Lampião Ltda., o jornal era financiado por uma combinação de vendas, assinaturas, doações de colaboradores e contribuições dos próprios editores, muitos dos quais já tinham experiência em publicações alternativas.

A redação era formada por um grupo heterogêneo de intelectuais, artistas e ativistas políticos. Aguinaldo Silva, escritor e futuro autor de telenovelas, era o editor-chefe. João Silvério Trevisan, escritor e cineasta, contribuía com sua experiência literária e sua forte militância na causa LGBT.

Darcy Penteado, pintor e ilustrador, realizava as ilustrações — frequentemente com experimentações no campo da arte homoerótica. Jean-Claude Bernardet, crítico de cinema, trazia um olhar analítico sobre cultura e política. E Peter Fry, antropólogo, oferecia uma perspectiva acadêmica sobre sexualidade e identidade.

A sede do jornal ficava no Rio de Janeiro, mas a equipe era composta por colaboradores espalhados por todo o país. “O Lampião da Esquina” foi o primeiro periódico LGBT brasileiro a ter uma tiragem significativa (cerca de 15 mil exemplares a cada edição) e a conseguir ter alcance nacional.

A estrutura do jornal era organizada em colunas e editorias fixas, abordando uma série de temas, do noticiário político às manifestações culturais.

A seção “Cartas na Mesa” abria espaço para o diálogo com os leitores, que enviavam relatos pessoais, críticas e até pedidos de ajuda. Em “Esquina“, o jornal trazia notícias sobre o Brasil e o mundo, sempre com um olhar crítico sobre as ações do regime.

A seção “Reportagem” era dedicada às matérias de capa, que abordavam temas como discriminação no ambiente de trabalho ou a violência policial contra transexuais. Havia também a coluna “Bixórdia”, marcada pelo humor ácido e irreverente — quase sempre assinada por pseudônimos para garantir a segurança dos autores.

O “Lampião” também publicava resenhas culturais de temática LGBT, divulgando os livros de autores como Cassandra Rios e filmes como “O Beijo no Asfalto”, de Bruno Barreto. Por fim, o jornal produzia grandes entrevistas com personalidades LGBT ou figuras vinculadas à luta política e aos movimentos sociais — de Ney Matogrosso e Leci Brandão a Lula e Abdias Nascimento.

Um jornal plural e combativo

O Lampião da Esquina” não se limitava a ser um veículo de informação. Ele pretendia ser um agente da transformação social, desafiando os estereótipos, os sensos comuns e os estigmas que eram predominantes na sociedade.

Tal intenção fica clara em seu editorial de estreia, publicado em abril de 1978, onde se lê: “É preciso dizer não ao gueto e, em consequência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como uma espécie de maldição.”

“(…) Para acabar com essa imagem-padrão, Lampião não pretende soluçar a opressão nossa de cada dia, nem pressionar válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não-reprodutividade uma sociedade petrificada na mitologia hebraico-cristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz”.

O veículo teve grande importância para a afirmação das identidades LGBT e para a articulação da defesa das pautas das minorias, além de se dedicar a combater estereótipos negativos, celebrar a sociabilidade homossexual e denunciar os comportamentos homofóbicos e a perseguição contra gays, lésbicas e transexuais.

O Lampião da Esquina” não se limitava a às causas LGBT. Suas reportagens abordavam o racismo estrutural, a misoginia, a exploração dos trabalhadores e até questões ambientais como o desmatamento da Amazônia — uma editoria pioneira, em um tempo em que esses temas eram quase invisíveis na mídia tradicional.

A perseguição

A publicação de um jornal abertamente homossexual em um país sob ditadura militar, marcado pelo conservadorismo social, era um ato repleto de ousadia, coragem e riscos reais.

Mesmo com a censura abrandada pela distensão, o jornal permaneceu durante toda sua existência sob a vigilância do Centro de Informações do Exército e dos órgãos repressivos do regime.

O Lampião da Esquina” foi alvo de uma série de inquéritos e investigações conduzidos pela ditadura, sob a alegação de “cometer atos atentatórios contra a ordem e o regime” e “ofender a moral e o pudor público”.

Vários dos editores do jornal forçam forçados a comparecer às sedes dos órgãos repressivos do regime para prestar depoimentos. A redação era constantemente submetida a ameaças e tentativas de intimidação.

Os órgãos de segurança da ditadura realizaram uma ofensiva contábil contra o jornal, produzindo uma devassa nos balanços de pagamento em busca de irregularidades. Também tentaram cortar suas fontes de financiamento, criando limitações para a receita publicitária e constrangendo eventuais anunciantes.

Além das ações do governo, o jornal também sofria constantes ameaças de grupos reacionários, tais como o Comando de Caça aos Comunistas — uma organização paramilitar responsável por uma série de ataques contra a esquerda, incluindo atentados a bomba e assassinatos.

Bancas de jornal que vendiam “O Lampião” se tornaram alvos frequentes de ataques, sendo depredadas ou incendiadas.

Encerramento e legado

A perseguição empreendida pela ditadura dificultou ainda mais a manutenção de “O Lampião da Esquina”. Como todo veículo da mídia alternativa, o jornal já sofria falta de recursos. A perseguição sistemática resultou na queda da tiragem, ao mesmo tempo em que a guerra jurídica travada contra o jornal impunha mais custos e desgaste.

O jornal também passou a sofrer com as divergências internas. Uma parte da equipe, agrupada em torno de João Silvério Trevisan, defendia a manutenção de uma linha política crítica e alinhada à esquerda. Outros preferiam uma abordagem menos partidária, buscando atrair um público mais diverso.

As tensões internas e as pressões externas levariam ao encerramento do jornal em junho de 1981. Ao todo, o jornal publicou 38 edições regulares e três edições extras.

Apesar de sua curta duração, o “O Lampião da Esquina” se consolidou como um dos grandes marcos do movimento LGBT no Brasil. Foi um dos primeiros veículos a tratar a homossexualidade como uma questão de cidadania, desafiando a visão preconceituosa e o conservadorismo da direita e a indiferença de alguns setores da esquerda.

A abordagem interseccional do jornal, conectando sexualidade, raça, gênero e classe social, foi também pioneira, antecipando um debate que somente começaria a se popularizar a partir dos anos 90. Por fim, o jornal teve um papel catalisador no movimento LGBT brasileiro, inspirando a criação de grupos de afirmação e iniciativas que auxiliaram a estruturar o ativismo LGBT no Brasil.



Fonte: Opera Mundi

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