O discurso anti-imigratório nos Estados Unidos é de interesse ao governo Trump, já que “todos os problemas passam a se relacionar com os imigrantes, que são apontados como os invasores“. É o que avalia o historiador das relações internacionais Roberto Moll, afirmando que os imigrantes no país são peças “cruciais” na escalda autoritária da Presidência republicana.
Na primeira semana de governo, após assinar uma série de medidas restritivas à permanência dos imigrantes sem green card no país, Trump promoveu uma blitz nacional que encarcerou mais de mil pessoas em um único dia. Na mira estão os imigrantes em situação irregular, uma multidão de 11 milhões de pessoas transformadas em bodes expiatórios no país mais bélico do planeta.
“Com essa perspectiva, você define quem é e quem não é cidadão do país. Todas as nações, de uma forma ou de outra, securitizam e excluem esse ‘outro’. A própria perspectiva de nacionalismo está ligada à definição de ‘quem somos nós’ e de ‘quem são os outros’. O que impacta é a perspectiva de expulsão de um grupo étnico completo, os latinos. Estamos vendo a expulsão massiva de imigrantes sem qualquer amparo legal. Não há julgamento, não há processo jurídico, as pessoas estão sendo presas e deportadas”, disse Moll.
Opera Mundi conversou com o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e também um dos membros do INCT-INEU, rede de estudos especializada em Estados Unidos.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Roberto Moll:
Opera Mundi: Os Estados Unidos estão promovendo uma guerra comercial com os países do mundo inteiro e, internamente, o Serviço de Imigração e Controle de Aduanas (ICE) vem perseguindo e deportando os imigrantes. Como você analisa esses movimentos do governo Trump?
Roberto Moll: o tarifaço e a imigração são os elementos aglutinadores do discurso trumpista porque trazem uma outra discussão, a de que a relação capital e trabalho precisa ser reformada de alguma maneira. No caso das tarifas, Trump diz que é porque os Estados Unidos sofrem “concorrência desleal” de outros atores internacionais, o que atingiria o emprego do cidadão comum.
Com a imigração é a mesma coisa. A discussão é de que os imigrantes roubam o trabalho dos norte-americanos e são o grande mal do país. Há uma questão moral, não dita explicitamente, mas nas entrelinhas, de que, principalmente, os latinos, mas também os árabes, os africanos e etc, são seres humanos de segunda qualidade. Eles ‘degeneram os Estados Unidos’, eles ‘trazem o crime’.
Um discurso que interessa muito ao governo Trump, porque todos os problemas passam a se relacionar com os imigrantes, que são apontados como os invasores. É um discurso xenófobo, anti-imigratório e, eu diria, antilatino.
A questão imigratória vem sendo utilizada para transferir poderes autoritários para o Executivo, o comandante em chefe. Os imigrantes são cruciais para a escalada autoritária de Trump. Até então, o ICE precisava de uma série de procedimentos para atuar no território nacional, inclusive de modo articulado com as forças de segurança dos condados e estados.
Agora, eles estão fazendo batidas nas cidades santuários – Denver, Chicago, Los Angeles, Nova York – onde as forças de segurança local e da administração pública não denunciavam os imigrantes não documentados. Na verdade, elas sequer consideravam se eles são documentados ou não. Então, Trump colocou o ICE para realizar esse trabalho, em particular em Denver e Chicago, para servirem de exemplo ao resto do país.
Em Denver, o ICE chegou a invadir uma boate frequentada por latinos, com a justificativa de que ali havia uma gangue. Se você faz uma batida numa boate com 100 pessoas, certamente encontrará meia dúzia com passagem pela polícia ou em situação irregular.
Semanas atrás, Trump propôs rever e retirar a nacionalidade dos filhos de imigrantes não documentados que nasceram legalmente no país. Como você avalia essa medida?
Isso é inimaginável para os países da América que foram colônias. Quem nascia nas colônias precisava ser cidadão nacional, porque se não seria europeu ou nunca pertenceria a um corpo nacional e político. É esse direito que Trump pretende retirar das pessoas, de quem nasce no país.
Em 1986, durante a reforma migratória, surgiu uma proposta semelhante sob o mesmo argumento de segurança nacional. Alguns autores chamam esse processo de securitização, eu tenho ressalvas com o uso do termo, mas essencialmente é você, visando outros objetivos políticos, criar uma ameaça e promover uma reforma do Estado e das políticas de segurança para combater essa suposta ameaça.
Com essa perspectiva, você define quem é e quem não é cidadão do país. Todas as nações, de uma forma ou de outra, securitizam e excluem esse ‘outro’. A própria perspectiva de nacionalismo está ligada à definição de ‘quem somos nós’ e de ‘quem são os outros’.
O que impacta é a perspectiva de expulsão de um grupo étnico completo, os latinos. Estamos vendo a expulsão massiva de imigrantes sem qualquer amparo legal. Não há julgamento, não há processo jurídico, as pessoas estão sendo presas e deportadas.
É importante observar que Trump não traz nenhuma novidade, pelo contrário, ele reformula o passado, com as ferramentas que a modernidade lhe oferece. E são políticas muito cruéis como as propostas de construção do muro, de tirar a nacionalidade dos filhos de imigrantes, de criar campos de concentração de trabalhos forçados.
Tudo isso já aconteceu nos Estados Unidos. Em 1982, no começo do governo Reagan, eles criaram campos de concentração para os haitianos, afirmando que eles levavam AIDS para o país.
Nós temos uma falsa perspectiva de que os Estados Unidos e o Ocidente são muito civilizados. Isso não é verdade. Esses episódios são apagados da história muito rapidamente pelo discurso oficial. O nosso papel é resgatá-los.
Nessa semana, a Corte Suprema autorizou o uso da Lei de Inimigos Estrangeiros, usada no caso da deportação dos 238 venezuelanos para a prisão de segurança máxima em El Salvador. Uma lei de 1798, como isso é possível?
A partir dessa ideia disseminada de que o imigrante é uma ameaça e de que os Estados Unidos estão sendo invadidos. Obviamente que nenhum país está sendo invadido, mas eles recuperaram o argumento da Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798, criada num contexto de ameaça efetiva de invasão pelos franceses; e a trouxeram para 2025, para ser usada contra os imigrantes latinos.
Com essa lei, eles tentaram justificar a deportação dos venezuelanos para El Salvador. O juiz federal James Boasberg alegou a inconsistência do uso, afinal, ninguém está invadindo os Estados Unidos, mas Trump deportou as pessoas mesmo assim. Os venezuelanos foram presos e sem julgamento foram acusados de pertencerem à gangue Tren de Aragua. Surgiram muitas denúncias, inclusive dos familiares de pessoas deportadas que não têm nenhuma relação com o crime e com essas gangues.
O juiz inclusive alertou que se Trump continuar utilizando a justificativa de ameaça à segurança nacional, com o poder de colocar as pessoas em um avião, ele abrirá caminhos para que todos os homens venezuelanos e salvadorenhos, com mais de 14 anos, supostamente suspeitos (e basta ter uma tatuagem) possam ser mandatos para El Salvador.
Trump ignorou a decisão do juiz e mandou essas pessoas para a prisão de segurança máxima. Uma prisão construída para ser alugada por outros países e que tem várias denúncias de supressão de direitos civis, humanos e sociais. A decisão agora da Suprema Corte agrava esse processo.
Arquivo pessoal
Quais os efeitos das deportações na economia norte-americana?
Essa pergunta precisa de tempo para ser respondida. As deportações têm impacto em determinados setores que dependem de mão-de-obra imigrante e latina. As pessoas, mesmo quem tem documento de permanência ou que nasceu nos Estados Unidos, sentem-se acuadas para ir ao trabalho, porque o ICE pode bater na porta a qualquer momento.
E ‘bater lá’ é colocar as pessoas em um carro, achar que os documentos delas são falsos e mandá-las para fora do país. Essa é uma ameaça que paira sobre as famílias e todos os latinos em última instância. Nas redes, as pessoas dizem que só precisa ter medo quem não está dentro da lei. Isso não é verdade, mesmo correto, com documentação, as pessoas estão sendo deportadas.
Isso faz com que a oferta de mão-de-obra diminua. Os setores mais afetados são a construção civil, de bares e restaurantes e, em menor medida, o agrícola porque os imigrantes latinos se concentram, desde os anos 80, nos perímetros urbanos e no setor de serviços.
Outro aspecto é que determinados setores do capital se valem da precarização desses trabalhadores não documentados e pressionados pelo medo da perseguição, para explorá-los ainda mais. O resultado é uma maior extração do capital sobre esses trabalhadores que topam tudo na condição em que estão.
No entanto, a partir do momento em que as pessoas não aparecem para trabalhar, isso passa a ser ruim. Durante a reforma migratória dos anos 80, os próprios conservadores foram contra a proposta do ICE fazer batidas sem mandatos por este motivo.
Nesse processo de securitização, como se dá a relação entre a indústria da guerra e o sistema de segurança interna nos Estados Unidos?
Há muito tempo existe um mal-estar grande nos Estados Unidos em relação aos gastos militares. As pessoas argumentam que o dinheiro, em vez de ser investido no trabalhador, é usado para sustentar as guerras. No entanto, é preciso lembrar que talvez a cadeia produtiva da indústria militar norte-americana seja a maior cadeia de produção do país, do ferro e alumínio à tecnologia, afinal, os programadores do Vale do Silício não estão fora disso.
Interferir menos nas guerras significa menos dinheiro para essa indústria bélica, então, como você supre esse buraco? Você transfere parte disso para os aparatos de segurança interna, lembrando que o elemento securitizado aqui é o imigrante, o latino, o afro-americano, os mulçumanos…
Você transfere o complexo industrial militar para o de segurança interna. Os métodos e as ferramentas empregados nessas guerras são ajustados e absorvidos pela segurança pública; e as forças de segurança estão crescendo no país. Você encontrar esquadrão da SWAT nas forças de segurança das universidades, e estamos acompanhando as deportações e prisões dos estudantes pró-Palestina.
Esse processo de militarização é acompanhado pela introjeção do inimigo interno. É o que mantêm as vendas do setor, o drone de última geração vendido para a Ucrânia passa a ser usado na fiscalização das fronteiras e por aí vai.
No primeiro mandato de Trump, houve uma discussão sobre a construção de prisões, porque se você começa a prender as pessoas, é preciso colocá-las em algum lugar. Construir prisão envolve uma cadeia produtiva enorme, a construção civil, a indústria da segurança e as empresas privadas absorvem a indústria bélica, com incentivos do Estado. Neste segundo mandato, pelo menos por enquanto, Trump decidiu alugar a prisão em El Salvador e pagaram 6 milhões de dólares para deixar as pessoas presas ali.
A construção do ativo “imigrante”, do negro, das minorias como inimigos internos tem toda essa contrapartida econômica, que não podemos perder de vista. Além disso, as deportações funcionam como propaganda. ‘Eu estou prendendo’, ‘eu sou o cara que faz’, ‘separo famílias mesmo, não tem problema’.
Nessa lógica, quanto mais se prende, alguém ganha mais. Por mais que a prisão seja pública, os serviços são privatizados, você tem que oferecer comida, água, a própria construção da prisão. Os setores privados da economia crescem muito com a perseguição e a prisão das pessoas, e os Estados Unidos são os que mais encarceram as pessoas no planeta.
Estamos vendo o fascismo nos Estados Unidos?
Há características do fascismo, sem dúvidas. Embora eu não ache que Trump seja nazista ou fascista, mas por tudo o que reverbera, o trumpismo pode ser incluído nesse campo sim, como o nazismo, o fascismo, o salazarismo… A diferença entre o populismo e o fascismo é que enquanto o populismo é corporativista, o fascismo é um corporativismo que justifica as hierarquias, inclusive as raciais. Isso é óbvio neste governo. Ele tem perspectivas fascistas e uma ideia de sociedade como um corpo único.
Em relação às reações internas a todos esses movimentos, como você avalia a gigantesca onda de protestos nos Estados Unidos?
Eles foram muito impactantes do ponto de vista numérico, mas ainda estão muito incipientes. Os protestos mostraram uma desarticulação do Partido Democrata com as ruas. Com exceção de Bernie Sanders, que não é um parlamentar do partido, e da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, não vimos outros democratas de peso durante os protestos, capitalizando esses movimentos.
Um segundo ponto é a inexistência de um elemento propositivo e aglutinador nesses movimentos. O que vimos é um movimento antiTrump e não pautas efetivas. Há uma reação contra as deportações, mas uma proposta para a reforma migratória ou uma proposta trabalhista de reforma das relações entre o capital e trabalho nos Estados Unidos, isso ainda não surgiu. De modo geral, há um conjunto de propostas e nenhum elemento aglutinador.
A extrema direita, pelo contrário, apresenta propostas, podem ser não factíveis, podemos não gostar ou podem ser propostas ancoradas em fake news, mas, de fato, eles apresentam um corpo de propostas e um elemento aglutinador para elas, no caso, a perspectiva de nacionalismo do Trump, mais especificamente, a política anti-imigratória e, agora, a de tarifas.
São pautas que aglutinam e somam a outras ligadas às questões de comportamento, como a de gênero e a da população LGBTQIA+, que circundam este discurso. Porém, tudo está aglutinado na perspectiva do nacionalismo e do patriotismo em menor medida. Eles conectam tudo com a questão imigratória e, agora, a tarifária.
Mas é natural que ainda exista esse elemento propositivo e aglutinador, isso se dá no processo e eles têm quatro anos consolidar esse movimento. É inimaginável pensar agora em um impeachment de Trump, apesar de tudo.
Fonte: Opera Mundi