Com o novo governo Trump e a convergência de líderes das Big Techs em sua direção, ficamos cada dia mais tentados a interpretar o processo político que testemunhamos por analogias vindas diretamente da ficção científica e conceitos elásticos que poderiam muito bem servir de títulos para algumas obras do gênero: tecno-fascismo ou fascimo digital são alguns deles. Mas o quanto esses termos ajudam de fato a compreendermos o que se passa hoje? E mais, quais léxicos políticos e filosofias contemporâneas de fato influenciam esse novo momento do trumpismo?
Em um texto recente neste Opera Mundi o conceito de tecnofeudalismo foi abordado, especialmente em seu uso no espectro progressista, politicamente mais à esquerda. Pensadores como Yanis Varoufakis e Jodi Dean utilizam dessa noção para pensar a nova dinâmica social que emerge com as gigantes da tecnologia e o processo de digitalização. Enquanto isso, há também expressões dessa interpretação à direita do espectro político que precisam ser consideradas. Enquanto Joel Kotkin aparece como expoente central de um “retorno ao feudalismo” dentre teóricos conservadores, criticando o poder da tecno-oligarquia “woke” enquanto utiliza do termo “neofeudalismo”, outras perspectivas também despontam.
(Foto: Casa Branca / Flickr)
Por exemplo, Glen Weyl e Eric Posner, pensadores mais jovens e de linha neoliberal que pensam o tecnofeudalismo na obra Radical Markets (2018). De acordo com eles, o tecnofeudalismo “atrapalha o desenvolvimento pessoal, assim como o feudalismo atrapalhava adquirir educação ou investimento para melhoria da terra.” Além deles, Morozov (2022) considera que, para liberais clássicos o capitalismo, “corrompido” pela política, sempre está à beira de retornar ao feudalismo.
“Ainda assim, alguns na direita radical veem o neofeudalismo como um projeto a ser abraçado. Usando rótulos como ‘neo-reação’ ou ‘iluminismo sombrio’ [dark enlightenment], vários deles são próximos do investidor bilionário Peter Thiel. Entre eles está o tecnólogo-intelectual neo-reacionário Curtis Yarvin, que hipotetizou um mecanismo de busca neo-feudal, com o nome fofo de Feudl, já em 2010” (MOROZOV, 2022).
O movimento neorreacionário (ou NRx) possui alguns representantes de destaque, como Curtis Yarvin, mas também Nick Land e Patri Friedman. Os autores Smith e Burrows (2021) identificam influências de James Dale Davidson e William Rees-Mogg, escritores de The Sovereign Individual (1997), onde encontramos a previsão do colapso de Estados-nação e o eclipse da política por iniciativas corporativas – baseando-se, para isso, na aceleração do processamento de informações pelas redes de comunicação descentralizadas. Esse horizonte político orienta o que se chama hoje de Dark Enlightenment.
É interessante notar relações entre posições teóricas (proto)neorreacionárias e investimentos materiais de capital que se alinham com o imaginário do dark enlightenment. Um dos casos exemplares é a plataforma Urbit, concebida por Yarvin em 2002, que consiste em uma plataforma descentralizada de servidores pessoais. Recebendo incentivos de muitos investidores, tendo Peter Thiel dentre os ideologicamente notáveis.[1]
O ideário político desses neorreacionários tem a imagem de uma distribuição “tipo feudal” do espaço e da política, à partir de redes de soberania e mercado, como descreve Yarvin:
“A ideia básica é que, na medida que os governos bostas que herdamos da história são esmagados, eles deveriam ser substituídos por uma rede global de dezenas, até centenas de milhares de mini-países soberanos e independentes, cada um deles governado pela sua própria corporação societária [joint-stock corporation] sem importarem-se com a opinião dos residentes. Se os residentes não gostam do seu governo, eles podem e devem mudar-se. O design é só de ‘saída’, sem ‘voz’” (YARVIN apud SMITH e BURROWS, 2021, p. 149).
Para Yarvin, esse sistema iria ter uma sensação feudal mas também futurística, onde todo aparelho político institucional relacionado ao Estado-nação seria substituído pela administração de um tecnocapital integrado no “complexo de hierarquias criptográficas de poder corporativo soberano e reforçados com infraestruturas de vigilância duráveis, a fim de manter a ordem, a segurança e o lucro” (ibid). O imaginário cibernético do ‘iluminismo das trevas’ sonha com o império do capital digitalizado e a mercantilização em rede da soberania, sendo profundamente relacionado à aberração ideológica chamada de anarcocapitalismo, compartilhando ideais anti-democráticos e anti-igualitários. Curiosamente, esse imaginário mobiliza noções como neo monarquismo, neo medievalismo e, enfim, a tentativa de combinar dimensões pré-capitalistas com um futurismo tecnológico com os dois pés no Vale do Silício.
Tendo escrito por anos sob o pseudônimo de Mencius Moldbug, Yarvin acabou se tornando uma espécie de filósofo oficial para muitos líderes das empresas de Big Tech – como Thiel e Andreessen. Há ironicamente uma analogia histórica que pode ser traçada entre o movimento neorreacionário atual e o futurismo italiano, com suas raízes simultaneamente reacionárias e anti-conservadoras, além da grande influência sobre o ideário de Mussolini: Filippo Tommaso Marinetti escreveu o Manifesto Futurista afirmando a necessidade de destruição dos museus, das bibliotecas e das universidades, sendo precursor das políticas postas em prática pelo fascimo italiano. De modo similar, Yarvin também prega a destruição da universidade, do complexo educacional em geral e da mídia, assim como de organizações sem fins lucrativos.
Sendo uma influência intelectual para o vice-presidente dos EUA, JD Vance, além de próximo a muitos apoiadores de Trump, paralelos entre sua filosofia e as práticas governamentais que acompanhamos no começo deste segundo mandato já sugerem que sua influência não seja algo a ser ignorado. Por exemplo, quando insiste na tecla de um reset total do governo – com seu sugerido programa estratégico RAGE, sigla para “retire all government employees” (aposentar todos os funcionários do governo), formando a palavra FÚRIA em inglês – reflete a demissão recente de 30 mil funcionários federais encampada pelo DOGE, o novo departamento de eficiência do governo, criado e liderado por… Elon Musk, algo que, aparentemente, já ganhou simpatia e apoio de neoreacionários como Nick Land.
Encontramos aqui uma convergência entre o discurso neoreacionário e seus filósofos com as práticas de Trump e Musk – práticas que não são de improviso mas possuem, como vimos, uma ruminação ideológica não tão nova. Apesar do discurso acadêmico hegemônico ignorar figuras como Land ou Yarvin, talvez seja esse justamente o momento de levarmos a sério o que vem sendo proposto por essas figuras, especialmente quando suas aspirações políticas que pareciam mais delirantes mostram-se na ordem do dia. E especialmente quando são eles, mais do que a esquerda, que apontam a incompatibilidade entre capitalismo e democracia.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos livres. Atualmente estão abertas as inscrições para o minicurso Teoria Crítica hoje: entre Digitalização e Identidade.
Notas:
[1] Sobre isso, ver em: SMITH, Harrison; BURROWS, Roger. Software, sovereignty and the post-neoliberal politics of exit. Theory, Culture & Society, v. 38, n. 6, p. 143-166, 2021.
Fonte: Opera Mundi