quarta-feira, abril 23, 2025

Top 5

spot_imgspot_img

Últimas notícias

Denúncias revelam colapso na educação do Pará



Professores, pais e alunos relatam que a Seduc-PA tem adotado um sistema de ensino que dificulta a aprendizagem em comunidades tradicionais do Estado (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

16 de abril de 2025

João Paulo Guimarães – Especial para a Cenarium

BELÉM (PA) – “Reprovei em várias matérias, mas passei de ano. Como vou me sair bem no Enem assim?”. O desabafo de uma estudante do Sistema Modular de Ensino (Some), que prefere não se identificar, sintetiza a crise na educação pública do Pará, onde a falta de recursos nas escolas ribeirinhas compromete o aprendizado. Documentos, áudios, vídeos e imagens reunidos por professores, alunos e pais enviados à reportagem da REVISTA CENARIUM expõem um cenário alarmante: manipulação de dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), precariedade estrutural, repressão contra educadores, assédio moral e ingerência na Corregedoria.

A gravidade da situação ganhou destaque com a recente ocupação indígena na sede da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc-PA), evidenciando a fragilidade do ensino em comunidades tradicionais e originárias. A aluna segue desabafando: “O interior não tem a mesma estrutura das capitais. Quem estuda em colégio particular está anos à frente”, disse a estudante, reconhecendo a motivação financeira por trás da frequência escolar. “Muitos voltaram a estudar só pelo ‘Pé de Meia’, não para se formar. Se quisessem nos formar bem, não nos deixariam passar sem aprender”, disse.

Indígenas de diversas etnias ocuparam a sede da Secretaria de Educação do Pará (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

Filha de pais que não completaram o Ensino Fundamental, ela enxerga a educação como uma escapatória frágil: “Meus pais vivem da roça, e eu não quero isso, mas o ensino aqui não me prepara. O ciclo (que aprova os alunos direto) é um prejuízo total. Estamos sendo privados do conhecimento que deveríamos ter”, acrescentou.

A menina revela os planos sem esquecer das dificuldades. “Quero ser profissional, mas sei que vai ser árduo. Não tive professores de todas as disciplinas. Isso já reflete nas minhas notas”, completou.

Aprovação compulsória

A política de aprovações compulsórias nas escolas públicas do Pará escancara o descaso do Estado com a educação. A professora do município de Monte Alegre, a 900 km da capital Belém, relata o que é ser professora no Estado do Pará. “Estamos fingindo que ensinamos, os alunos fingindo que aprendem e o governo feliz com o resultado da superescalada do Ideb, sem se importar com a qualidade do ensino. Não se pode reprovar ou dar falta”, diz ela, que também prefere não revelar o nome por medo de represálias.

A mãe de alunos da rede pública de ensino do Estado, uma doméstica de 34 anos, pediu anonimato e contou que os filhos não sabem ler e escrever direito. “No tempo em que ela passou para o quinto ano, ela não sabia ler, e, quando passou para o sexto, também não sabia. Aí passaram ela direto. O menino também foi reprovado duas vezes, mas estranhamos a aprovação, porque ele também não sabia ler, não sabia escrever”, relata. 

Alunos de escola localizada em comunidade tradicional do Pará durante o recreio (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

Outra estudante de uma escola ribeirinha no Pará expõe preocupações com o sistema de ciclos no Ensino Médio, que aprova alunos independentemente do desempenho. “Mesmo faltando um ano inteiro, eu passei. Não acho isso correto”, criticou, destacando que a falta de exigência desmotiva o estudo e prejudica a preparação para o futuro.

Na universidade, vão exigir conhecimento que eu não tive na base”. A jovem também aponta a carência de infraestrutura: “Não temos laboratório de informática, biblioteca ou professores suficientes”. Para ela, o governo prioriza incentivos financeiros, como o Pé de Meia, em vez de investir em educação. “Deveriam usar esse dinheiro em livros e tecnologia, não só pagar os alunos para vir”, disse.

Questionada sobre suas perspectivas, ela identifica e tem consciência dos seus obstáculos. “Vim de uma realidade diferente de quem estuda em escola particular. Vai ser difícil competir”, admite.

Ela relata que, em sua turma de 45 alunos, somente três foram aprovados no Enem em 2023. “Isso precisa mudar”, defende. Filha de pequenos agricultores, ela planeja ingressar em uma universidade pública, mas, segundo ela, o Estado prefere “aprovar em vez de educar”.

Sistema de ciclos

Um documento extraído do site da Secretaria de Estado de Educação (Seduc-PA) mostra que é adotado um modelo de progressão continuada, em que os alunos são aprovados automaticamente em determinados anos, independentemente do desempenho acadêmico. Isso significa que a reprovação ocorre somente em anos específicos, enquanto nos demais há progressão automática.

Documento mostra que diversos alunos seriam reprovados, mas em algumas séries os alunos são aprovados automaticamente (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

Nesse modelo, os ensinos fundamental e médio são divididos em ciclos de aprendizagem, em vez de séries tradicionais. Dentro de cada ciclo, os alunos são avaliados de forma contínua. A reprovação só acontece no último ano do ciclo. Nos anos intermediários, a aprovação é automática, detalha o documento.

Conflitos na educação

Um professor que atua na região de Paragominas, a 309 km de Belém, relata como a falta de aulas se tornou um problema estrutural. O servidor da educação ribeirinha forneceu um documento à reportagem, mostrando o prejuízo dos alunos do município no Diretório Regional de Mãe do Rio. “O tanto de alunos que não tiveram essas disciplinas durante o ano todo”, contou o profissional, referindo-se aos estudantes que foram aprovados sem cursar algumas matérias.

Segundo ele, a solução da Seduc para mascarar essa falha tem sido a imposição de provas online e a pressão sobre os professores para aprovar alunos sem qualquer critério pedagógico. “Eles passam compulsoriamente, e como isso está sendo denunciado, agora inventaram essa prova online para legitimar a farsa”, denunciou o professor.

Essa política de aprovações forçadas tem gerado revolta entre os docentes, que são chamados para reuniões de conselho de classe somente para ratificar decisões já tomadas. “Chamaram a gente para assinar um documento concordando em aprovar os alunos que não tiveram essas disciplinas, sem nada, sem prova, sem nada”, revelou o educador.

Diante da imposição, os professores aceitaram aprovar apenas os alunos do terceiro ano, para que pudessem ingressar no mercado de trabalho ou em faculdades particulares. “Foi muito a contragosto, mas no primeiro e no segundo ano a gente disse que não, eles vão ter que ter essas disciplinas”, destacou.

A recomendação do professor é que os colegas busquem documentos oficiais para expor a real situação da rede pública. “É uma evidência de que o Estado é omisso, prevaricador e negligente com os alunos”, concluiu.

Sala de aula bagunçada retrata a precariedade das escolas de comunidades tradicionais do Pará (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)
Realidade paralela

Símbolo de resistência na educação paraense, a Escola Municipal Bom Jesus I, localizada na Boca do Rio Caji, no município de Igarapé-Miri, a 232 km de Belém, vive uma realidade diferente, graças ao Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), modalidade que garante o ensino médio em localidades distantes das sedes municipais.

O impacto do Some na comunidade é profundo e pode ser observado na trajetória de ex-alunos, muitos dos quais hoje atuam na própria rede municipal de ensino. Mesmo após 37 anos, o sistema continua sendo essencial para a educação em Igarapé-Miri.

“Temos professores hoje, na escola municipal, que foram alunos do Some, assim como a coordenadora pedagógica e até o diretor da escola. Isso mostra o impacto que o sistema tem na formação profissional da região”, destaca um professor que prefere não se identificar.

Ex-alunos do sistema também ocupam cargos relevantes na cidade, como o ex-secretário de Saúde, que seguiu carreira na enfermagem. “O Some não é apenas um modelo de ensino, mas uma referência para toda a população. Muitos que passaram por aqui hoje ajudam a transformar a realidade educacional do município”, ressalta o professor.

A Escola Bom Jesus atende três turmas do ensino médio, com 38 alunos no primeiro ano, 44 no segundo e 38 no terceiro. Em um trabalho escolar que retrata os sonhos e projetos de vida dos estudantes, é possível perceber a diversidade de aspirações. Para alguns, um simples curso de informática pode ser a chave para conquistar um emprego e garantir segurança financeira.

Escola localizada em comunidade tradicional do Estado (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

Uma estudante demonstra o desejo de se tornar advogada, não apenas para garantir seus direitos, mas para ajudar outras pessoas em dificuldade. Em seu depoimento, ela escreve: “Quero me tornar uma boa advogada para ajudar minha família”.

Outro aluno expressa seu sonho de viajar para os Estados Unidos, conhecer lugares turísticos, parques, museus e experimentar a gastronomia local. “Minha vontade é conhecer cada um desses lugares”, revela.

A educação superior surge como um caminho para mudanças. Uma aluna fala sobre sua admiração por uma faculdade de tecnologia localizada no município de Abaetetuba, a apenas 43,8 km de Igarapé-Miri. “Sempre tive vontade de estudar nessa faculdade. Quero estudar muito para conseguir uma bolsa de estudos”.

Entraves

A realidade social do município é um dos entraves para que sonhos como esses sejam realizados. Histórias de violência em comunidades vizinhas — como decapitações por disputas entre facções criminosas — fazem com que os professores sintam medo, mas mesmo assim não abandonem seus postos em escolas como a Bom Jesus I, que conta com estrutura sucateada.

Um professor conta que lecionou em janeiro de 2023, na vila Menino Deus, no Rio Anapu, quando um jovem de uma facção local foi assassinado após uma briga em uma festa no Baixo Anapu, a 692 km da capital. Duas semanas depois, seus algozes invadiram a casa do autor do crime, queimaram o corpo e, em um ritual de vingança, decapitaram o cadáver diante da comunidade aterrorizada. “A bem da verdade, só comentamos sobre isso fora de lá. Embora já tenha dois anos do ocorrido, quase ninguém quer falar sobre o assunto”, diz ele.

A escola tem estrutura precária; alunos estudam em salas de aula com paredes de madeira sem vedação (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

O prédio onde as aulas são ministradas parece abandonado. Alunos transitam entre tábuas podres, fiações elétricas expostas e telhados antigos e sujos, cujas telhas parecem ser as originais de 1998.

Os estudantes assistem às aulas em salas com paredes de madeira sem vedação. Enquanto as turmas de alunos mais velhos fazem um simulado durante a chuva, com goteiras, salas escuras e calor intenso, crianças entre 5 e 10 anos cantam na sala vizinha. Ainda há o barulho dos barcos, rabetas e porcos que passeiam pelo lamaçal abaixo da escola de palafitas.

Nos três dias em que acompanhamos a rotina de alunos e professores do Some em Igarapé-Miri, a merenda escolar foi a mesma: uma caneca de mingau quente de arroz com açaí, que podia ser repetida para saciar a fome.

O assunto foi tema de capa e especial jornalístico da nova edição da REVISTA CENARIUM. Acesse aqui para ler o conteúdo completo.

Capa da Revista Cenarium (Reprodução)
Editado por Eduardo Figueiredo
Revisado por Jesua Maia





Fonte: Revista Cenarium

trezzenews