Há 29 anos, em 17 de abril de 1996, um acampamento de trabalhadores sem-terra era violentamente atacado pela polícia do Pará durante o Massacre de Eldorado do Carajás — uma das piores chacinas ocorridas na história da luta por reforma agrária no Brasil.
O acampamento abrigava manifestantes do MST que se dirigiam em marcha até Belém, a fim de pressionar o governo estadual a desapropriar um latifúndio improdutivo. Quando a marcha chegou ao município de Eldorado do Carajás, os sem-terra foram surpreendidos pelo ataque brutal dos policiais.
A operação, marcada por uma série de execuções sumárias, deixou 21 trabalhadores mortos e dezenas de feridos. Apesar de toda a comoção e da repercussão internacional gerada pelo episódio, quase todos os responsáveis pela matança ficaram impunes.
O Massacre de Eldorado do Carajás se tornou um símbolo da violência no campo e da luta por justiça fundiária. A data da chacina é anualmente rememorada como Dia Internacional da Luta dos Camponeses e serve de referência ao “Abril Vermelho” — a jornada nacional de mobilizações do MST, em memória às vítimas e em defesa da reforma agrária.
A Fazenda Macaxeira e a marcha dos sem-terra
A década de 1990 foi marcada no Brasil pelo recrudescimento da violência no campo. Reagindo aos avanços sociais nas questões fundiárias — nomeadamente o reconhecimento da função social da terra como determinação constitucional e a aprovação da Lei Agrária —, os latifundiários recorriam cada vez mais à prática da pistolagem, contratando jagunços e capangas armados para intimidar e atacar pequenos agricultores e lideranças rurais.
Os conflitos eram particularmente intensos na Região Norte do país, submetida à forte expansão da fronteira agrícola. A convergência de interesses entre líderes políticos e latifundiários facilitava o emprego das forças de segurança como capangas de fazendeiros.
Apesar da crescente violência, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) seguiu ampliando a luta contra a concentração fundiária, realizando a ocupação de terras improdutivas. Em março de 1996, um grupo com mais de 3,5 mil camponeses ligados ao MST ocupou a Fazenda Macaxeira, um latifúndio de 40 mil hectares sem uso localizado em Curionópolis, no sudeste do Pará.
A ação visava pressionar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a iniciar o processo de desapropriação da fazenda. Alinhado à política de criminalização dos movimentos camponeses empreendida por Fernando Henrique Cardoso (FHC), o órgão ignorou a solicitação. O MST decidiu então organizar uma marcha até Belém, para reivindicar ações do governo estadual.
Cerca de 1,5 mil pessoas partiram na marcha de quase 900 quilômetros. Após sete dias marchando, os sem-terra resolveram acampar à beira da Rodovia PA-150, em um trecho conhecido como “Curva do S”, no município paraense de Eldorado do Carajás, à espera de mantimentos para completar os 600 quilômetros que restavam da jornada.
O massacre
Alegando a necessidade de “desobstruir a rodovia”, o governador do Pará, Almir Gabriel do PSDB, seu secretário de segurança, Paulo Sette Câmara, e o presidente do Instituto de Terras do Pará, Ronaldo Barata, determinaram que Polícia Militar dispersasse o grupo. Os agentes teriam sido instruídos pelo comando a usar “a força que for necessária, inclusive atirar”.
No dia 17 de abril de 1996, uma tropa com quase 300 policiais foi enviada para o local, sob o comando do coronel Mario Colares Pantoja, do major José Maria Pereira de Oliveira e do capitão Raimundo José Almendra Limeira.
Ao chegarem à “Curva do S”, os agentes, sem identificação na farda, armados com fuzis, metralhadoras e escopetas, começaram a agredir os camponeses e atacá-los com bombas de efeito moral. Os trabalhadores tentaram se defender jogando pedras e paus. Foi o suficiente para que os policiais abrissem fogo contra os sem-terra, iniciando um massacre bestial que se prolongou por duas horas.
A operação policial deixou um saldo de 21 camponeses mortos — 19 no local e outros dois que faleceram no hospital. Ao menos 79 pessoas ficaram feridas.
A ação foi filmada pela TV Liberal e as imagens rodaram o mundo, causando indignação e comoção internacional. Entre as cenas chocantes, chamou a atenção a perseguição a um adolescente de 17 anos, Oziel Alves Pereira, totalmente desarmado, que tentou fugir do massacre, mas foi perseguido, baleado, algemado e arrastado pelos cabelos até o ônibus da polícia militar — sendo encontrado morto algumas horas depois.
Os corpos de algumas das vítimas tinham membros mutilados e crânios esmagados. A perícia comprovou que 11 dos 21 sem-terra mortos na ação foram executados com tiros à queima-roupa. Outros oito foram assassinados com instrumentos cortantes, como foices e facões.
Cruz marcando o local onde ocorreu o Massacre de Eldorado do Carajás
Reações, investigações e julgamentos
O governador do Pará, Almir Gabriel, negou responsabilidade sobre o massacre, atribuindo a truculência dos policiais a uma decisão pessoal do coronel Pantoja.
A repercussão do episódio gerou uma crise no governo federal. O ministro da Agricultura, Andrade Vieira, pediu demissão, sendo substituído por Arlindo Porto. Pressionado, FHC recriaria o Ministério da Reforma Agrária, buscando aplacar as críticas.
Ouvido no inquérito que apurou a responsabilidade pela ação, o administrador da Fazenda Macaxeira denunciou que o massacre fora encomendado por latifundiários.
Durante as investigações, descobriu-se que o coronel Pantoja e o major Oliveira estiveram reunidos na Fazenda Macaxeira alguns dias antes da chacina. Jagunços da fazenda também foram identificados por testemunhas como coautores do massacre, atuando lado a lado com os policiais.
Apesar dos depoimentos, nenhum fazendeiro foi indiciado. E mesmo com provas fartas, incluindo a filmagem da ação, a perícia feita pela Unicamp comprovando que os policiais tinham executado os sem-terra à queima-roupa foi considerada inválida.
Dos 155 policiais identificados como coautores do massacre, 153 foram absolvidos. Os dois oficiais restantes também foram previamente absolvidos, mas a sentença foi anulada por irregularidades processuais.
Uma matéria publicada pela revista Época revelou que um dos jurados era ligado aos oficiais e ofereceu dinheiro para que um membro do júri votasse pela absolvição.
Em um novo julgamento ocorrido em 2002, o coronel Mário Pantoja e o major José Maria de Oliveira foram respectivamente condenados a 228 e 158 anos de prisão. Os oficiais somente foram presos em 2012, depois de uma série de recursos. Ambos já cumprem pena em liberdade.
Os monumentos às vítimas e o Assentamento 17 de Abril
A Fazenda Macaxeira foi desapropriada e seus lotes foram entregues em 1997, dando origem ao Assentamento 17 de Abril. O assentamento hoje responde por 20% do abastecimento agrícola do mercado local e produz 20 mil litros de leite por dia e 200 kg de mel por ano.
Oscar Niemeyer desenhou um pequeno monumento para homenagear as vítimas do massacre (Monumento Eldorado Memória), mas a obra foi destruída por fazendeiros poucos dias depois da inauguração. Em 1999, um novo monumento concebido por Dan Baron foi erguido no local (Monumento das Castanheiras Mortas), mas já se encontra deteriorado por falta de manutenção.
O Massacre de Eldorado do Carajás foi a chacina mais brutal direcionada contra os movimentos sociais desde a redemocratização do Brasil, tornando-se um símbolo da violência no campo e da subordinação dos aparelhos do Estado aos interesses do poder financeiro e do latifúndio.
Foi também o marco de uma escalada de conflitos rurais que surgiram como uma reação à expansão do MST e à discussão sobre a necessidade da reforma agrária.
O aniversário do massacre, 17 de abril, foi proclamado Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária pela Lei nº 10.469/2002. A data também referencia o Abril Vermelho (a campanha anual de mobilizações do MST) e é celebrada como Dia Internacional da Luta dos Camponeses pela Via Camponesa — uma organização internacional que reúne movimentos de luta dos trabalhadores rurais.
Fonte: Opera Mundi