terça-feira, abril 22, 2025

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identificar ossadas é importante para reparação histórica


Após mais de cinco décadas, os desaparecidos políticos Grenaldo de Jesus da Silva e Denis Casemiro, vitimados pela ditadura militar brasileira e enterrados na Vala Clandestina de Perus, na zona norte de São Paulo, foram identificados. A notícia foi anunciada na quarta-feira (16/04) pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), no âmbito do Projeto Perus, uma iniciativa conjunta entre o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) e a Prefeitura de São Paulo.

A Opera Mundi, Edson Teles, coordenador do CAAF, apontou que as recentes revelações não somente permitiram a restituição dos remanescentes humanos às respectivas famílias, como também configuraram “um passo em direção à reparação histórica”. 

“Junto com a identificação, emerge o modus operandi da ditadura para a produção dos desaparecidos, a construção de narrativas falsas e como as instituições do Estado, para além dos centro de tortura, colaboraram para efetivar a política do regime ditatorial”, explicou. “É toda uma história que desmonta a farsa contada pela ditadura e que tem o potencial de mostrar ao país, no momento em que discute julgamento ou anistia a golpistas, o quão danoso é uma ditadura”.





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Para Teles, o Brasil vive atualmente uma oportunidade de julgar aqueles que cometeram crimes contra a humanidade e contra o Estado democrático de Direito, incluindo os envolvidos na tentativa de golpe de 2022, e de rever também a anistia imposta em 1979 aos torturadores do regime militar. 

“É a chance de o Brasil investir nos valores da democracia e dos direitos humanos”, pontuou.

O trabalho da equipe do Projeto Perus, uma iniciativa criada em 2014 a pedido de familiares de mortos e desaparecidos que denunciavam o abandono dos remanescentes no ossário do cemitério do Araçá, possibilitou o alcance às informações que resultaram na identificação de Grenaldo e Denis. 

Teles detalhou que o trabalho se dividiu em três etapas: a primeira, envolvendo o acesso a documentos e relatórios que incluem dados médicos, como tratamento dentário ou fratura, informações sobre ocultação de cadáveres em livros de cemitério, entre outras apurações; a segunda, uma análise bioantropológica dos remanescentes ósseos com vistas a definir sexo, estatura, idade; e a terceira, que após verificar compatibilidade entre dados da primeira e segunda etapa, foi realizada a extração do DNA para comparar com a de familiares.

Denis Casemiro (esquerda) e Grenaldo de Jesus da Silva (direita) foram identificadas na Vala de Perus, em São Paulo
Agência Brasil/Paulo Pinto

Quem são as vítimas?

Nascido em São Luís do Maranhão, Grenaldo de Jesus da Silva, foi preso no início da ditadura, em 1964, e expulso da Marinha brasileira — onde trabalhava — por reivindicar melhores condições de trabalho.

Após conseguir fugir da prisão, viveu na clandestinidade, mas acabou sendo assassinado em 30 de maio de 1972 ao tentar capturar uma aeronave no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Documentos do IML registraram que Grenaldo teria sido sepultado em 1º de junho de 1972 no Cemitério Dom Bosco como “indigente”, e constava como desaparecido até ter seus remanescentes ósseos identificados por meio do Projeto Perus.

Nascido em Votuporanga, no estado de São Paulo, Denis Casemiro foi pedreiro e trabalhador rural, além de integrar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

O paulista foi preso em abril de 1971, torturado e executado pela equipe do DOPS/SP coordenada pelo delegado Sérgio Fleury, uma das figuras repressoras mais conhecidas do regime ditatorial. Na época de sua morte, foram forjadas versões de tentativas de fuga que “resultaram em sua morte”. Posteriormente, a Comissão da Verdade revelou que Denis foi fuzilado. 

Leia a entrevista na íntegra:

Opera Mundi: qual o impacto dessas revelações, e do Projeto Perus como um todo, neste momento de luta contra o retorno do obscurantismo no Brasil?

Edson Teles: ao fazermos as identificações de Denis e Grenaldo nós restituímos os remanescentes humanos à família, mas também realizamos um passo em direção à reparação histórica.

Para fazer uma identificação é preciso reconstruir os passos de cada um antes da morte, durante a prisão e depois de terem sido ocultados pelos agentes do Estado. Assim, junto com a identificação, emerge o modus operandi da ditadura para a produção dos desaparecidos, a construção de narrativas falsas e como as instituições do Estado, para além dos centro de tortura, colaboraram para efetivar a política do regime ditatorial, seja produzindo laudos falsos, seja fazendo a exumação de um enterramento em cova individual para lançá-lo na vala comum.

É toda uma história que desmonta a farsa contada pela ditadura e que tem o potencial de mostrar ao país, no momento em que discute julgamento ou anistia a golpistas, o quão danoso é uma ditadura.

Como foi feito o processo de análise para conseguir identificar os corpos de Grenaldo de Jesus da Silva e Denis Casemiro?

Foram seguidos três passos principais. No primeiro, no chamado Antemortem, foi feita a pesquisa sobre cada um dos indivíduos, acessando documentos e relatos de suas vidas, como alguma informação sobre tratamento dentário ou alguma fratura, até informações sobre sua prisão, relatos de companheiros que o viram nos centros de tortura, dados sobre ocultação de cadáveres em livros de cemitério, documentos de IMLs, etc.

No segundo momento, foi realizada a análise bioantropológica dos remanescentes ósseos que se encontram em nosso laboratório com vistas a definir sexo, estatura, idade e qualquer outra característica individualizante.

Os dados da primeira etapa foram comparados com os da segunda etapa. Houve aproximações que nos permitiram decidir pela terceira etapa, que foi a retirada de amostras dos remanescentes ósseos, a extração do DNA e, por fim, a comparação com o DNA de familiares, previamente extraído no início do projeto. Nessa última etapa se obtém a confirmação da identificação.

Quando começou e como funciona o Projeto Perus?

O projeto começou em 2014 a partir de uma demanda dos familiares de mortos e desaparecidos que denunciavam o abandono dos remanescentes no ossário do cemitério do Araçá, em São Paulo. Com a mobilização realizada e o apoio da Comissão estadual da Verdade e do Ministério Público Federal, foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica entre o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, a Prefeitura de São Paulo e a Universidade Federal de São Paulo para o recebimento da Vala de Perus na universidade, com a criação do CAAF, e o devido tratamento forense e de identificação.

Tanto o Ministério quanto a Prefeitura entraram no acordo na condição de réus em uma ação civil pública que corre na Justiça Federal por não terem dado o devido tratamento aos remanescentes nos anos anteriores.

Qual o papel do CAAF, encabeçado pelo professor, dentro da iniciativa?

O CAAF realiza todo o trabalho de guarda e manutenção do material, todas as contratações de técnicos e colaboradores, a coordenação das equipes, e sistematiza no cotidiano dos trabalhos os melhores protocolos e as definições sobre as ações a serem tomadas. Ainda devido à ausência, seja de escuta pelo Estado ou de interlocutores dedicados, o CAAF é responsável por toda comunicação com as famílias e comunidade de Perus.

Ainda colaboramos, com estes dois últimos grupos, com a definição das condições técnicas necessárias a um memorial que possa receber o material ao final dos trabalhos.

O Projeto Perus, que é fruto de um esforço conjunto que envolve o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, sofreu impasses durante o governo Bolsonaro?

Durante o governo Bolsonaro o CAAF/Unifesp se viu com as responsabilidades multiplicadas. Logo em abril de 2019, o governo decretou o fim do grupo criado a partir do acordo. Em agosto, ele destituiu a composição dos membros da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos do Estado brasileiro, substituindo-os, nos postos representativos do Estado, por indivíduos que pregavam o negacionismo sobre a violência de Estado durante a Ditadura.

Em dezembro de 2019, esses representantes do Estado tentaram transferir os remanescentes para a Polícia Civil do Distrito Federal, em uma tentativa de desaparecer com a existência da Vala de Perus garantida pela universidade. Nos anos seguintes foram cortadas quase todas as verbas e o CAAF teve que pedir emendas parlamentares de suporte aos cuidados mínimos de manutenção. Somente em 2024 foi feito um novo acordo tornando possível recontratar nova equipe e retomar os trabalhos.

Como o senhor avalia o movimento “Sem Anistia”?

Crimes contra a humanidade, como os cometidos pelos agentes do Estado durante a Ditadura, e crimes contra o Estado de Direito, ambos por ofenderem aquilo que garante uma sociedade democrática, não podem ser beneficiados por acordos de impunidade.

O Brasil vive um momento ímpar, com a oportunidade de julgar os envolvidos na tentativa de golpe de 2022/2023 e de rever a anistia imposta pelos ditadores, em 1979, que tornou impunes os torturadores. É a chance de o Brasil investir nos valores da democracia e dos direitos humanos.



Fonte: Opera Mundi

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