Há 49 anos, em 14 de abril de 1976, a estilista Zuzu Angel era assassinada pelos órgãos repressivos da ditadura militar. Considerada pioneira da moda brasileira, Zuzu se destacou por sua contribuição para o surgimento de um estilo genuinamente nacional, marcado pela originalidade e pelas referências à brasilidade.
Após o desaparecimento de seu filho, Stuart Angel, um partícipe da resistência contra a ditadura militar, Zuzu travou uma luta dramática contra o regime. Ela denunciou os abusos da ditadura internacionalmente e foi responsável por organizar o primeiro desfile de protesto da história da moda.
As ações de Zuzu levaram à queda da cúpula do Ministério da Aeronáutica e a transformaram em um alvo do regime. O envolvimento dos militares foi ocultado através da simulação de um acidente, mas a responsabilidade do Estado brasileiro por sua morte foi comprovada pelas investigações posteriores.
O nome de Zuzu integra o Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria desde 2017.
Da juventude à maternidade
Zuleika de Souza Netto nasceu em Curvelo, interior de Minas Gerais, em 5 de junho de 1921. Ela pertencia a uma família de classe média, filha de Pedro Netto e Francisca Gomes Netto. Ainda pequena, Zuzu se mudou para Belo Horizonte, onde estudou no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e cursou o ginásio no Colégio Sagrado Coração de Jesus.
Desde pequena, Zuzu desenvolveu o interesse pela costura e pela moda. Ela observava a mãe e as tias costurando e costumava pedir os retalhos de tecidos para confeccionar roupas para as suas bonecas. Aos 18 anos, após se mudar para o Rio de Janeiro, Zuzu passaria a trabalhar como costureira profissional, ingressando posteriormente em um ateliê de moda.
Em 1940, durante uma visita aos pais em Belo Horizonte, Zuzu conheceu o empresário norte-americano Norman Angel Jones. Os dois iniciaram um relacionamento amoroso e se casaram em 1943. Dois anos depois, o casal se mudou para Salvador, onde Zuzu engravidou e deu à luz o seu primeiro filho — Stuart Angel Jones, nascido em 1946.
Zuzu e Norman retornaram ao Rio de Janeiro em 1948. Eles teriam mais duas filhas: Hildegard Angel, nascida em 1949, e Ana Cristina Angel, nascida em 1952. O casal se separou em 1960, mas Zuzu optou por manter o sobrenome do ex-marido.
A trajetória de estilista
A carreira de Zuzu como estilista deslanchou em meados dos anos 50, tendo como impulso inicial a sua participação nas “Obras das Pioneiras Sociais” — uma iniciativa beneficente criada pela primeira-dama, Sarah Kubitschek. O programa reunia mulheres interessadas em confeccionar uniformes escolares e peças de roupa para famílias carentes.
Zuzu confeccionou uma coleção de saias para as “Pioneiras Sociais” que fez enorme sucesso — peças coloridas, de modelagem tipo guarda-chuva, enfeitadas com fitas e laçarotes. Em seguida, ela começou a produzir blusas, vestidos e acessórios. A procura foi tão grande que Zuzu teve de transformar sua casa em um ateliê e contratar uma equipe de costureiras. Entre suas clientes mais fiéis, estava a primeira-dama.
Zuzu Angel se consolidaria como uma das maiores estilistas da história do Brasil. Ela é considerada uma pioneira da moda brasileira, tendo sido uma das primeiras criadoras preocupadas em produzir um estilo genuinamente nacional, desenhando peças de grande originalidade, evocando a cultura, as tradições e a natureza do Brasil.
Por uma necessidade econômica, Zuzu priorizava o uso de tecidos simples e baratos, mas não poupava esforços para transformá-los em peças sofisticadas e elegantes. Sua produção era fortemente marcada pelo experimentalismo — a exemplo do emprego de detalhes em renda de crochê, característicos do artesanato brasileiro.
Zuzu também foi responsável por introduzir o uso de materiais como palha, conchas, pedraria, fragmentos de bambu e contas de madeira em suas produções — uma abordagem que anteciparia em décadas algumas características da chamada “moda sustentável”.
As criações de Zuzu dialogavam, sobretudo, com as inovações estéticas do movimento tropicalista. Eram peças adaptadas ao nosso clima e imbuídas de brasilidade — vestidos leves, feitos de tecidos como algodão e chiffon, decorados com figuras de pássaros, borboletas, flores, frutas e elementos do folclore e da arte popular.
Zuzu Angel durante o lançamento de sua coleção em Nova York, 1972. Autor desconhecido
A carreira internacional
O talento de Zuzu lhe granjeou a admiração das mulheres da elite carioca, encantadas com seus vestidos elegantes e cheios de personalidade. Sua grife logo se tornaria uma das mais valorizadas do país.
Em 1966, Zuzu apresentaria 30 peças no 2º Salão de Moda da Feira Brasileira do Atlântico, recebendo fartos elogios da imprensa. No ano seguinte, ela produziria os figurinos para o filme “Todas as Mulheres do Mundo”, de Domingos de Oliveira. Ainda em 1967, Zuzu lançou a coleção “Fashion and Freedom”, abordando as pautas da segunda onda do feminismo.
Zuzu logo alcançou projeção internacional, produzindo peças para algumas das maiores celebridades de Hollywood, incluindo Joan Crawford, Liza Minelli e Kim Novak. Em 1968, ela criou um manto cravejado com pedras semipreciosas para a rainha Elizabeth II. No mesmo ano, ela foi premiada pelo Conselho Nacional de Mulheres, por suas contribuições ao país e às causas femininas.
Em 1969, Zuzu se tornou a primeira latino-americana a ingressar no Fashion Group Inc. Ela também foi escolhida para integrar o Conselho Internacional de Mulheres e recebeu o título de “Mulher do Ano”.
Zuzu realizaria seu primeiro desfile internacional em 1970, quando apresentou sua “International Dateline Collection” em Nova York. O desfile, sediado na loja de departamentos Bergdorf & Goodman, teve trilha sonora de Martinho da Vila e canções folclóricas do Brasil. A coleção se dividia em três segmentos, inspirados nas baianas, na história de Lampião e Maria Bonita e nas rendeiras.
Nos anos seguintes, Zuzu apresentaria suas peças em países como Canadá, Reino Unido e Alemanha. Ela realizou desfiles ao lado de gigantes da indústria da moda como Valentino e Yves Saint-Laurent. Também assinou os figurinos da peça de teatro “Vivendo em Cima da Árvore”, de Ziembinski.
O desaparecimento de Stuart
Zuzu Angel estava no ápice de sua carreira internacional quando sofreu um baque devastador: o desaparecimento de seu filho, Stuart Angel Jones. No dia 14 de maio de 1971, Stuart foi capturado por agentes dos órgãos de repressão do governo brasileiro. Ele nunca mais seria visto.
Desde o fim dos anos 60, Stuart estava engajado na luta contra a ditadura militar. Membro da Dissidência Comunista da Guanabara, uma cisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ele ingressou no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) em 1969.
Stuart atuou em diversas ações da resistência e chegou a se tornar um dos dirigentes do MR-8. Ele seria acusado de ajudar a planejar o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil — Charles Burke Elbrick, que seria solto em troca da libertação de 15 presos políticos. A ação levou a ditadura a intensificar a repressão contra os movimentos de resistência.
Preso por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), Stuart foi brutalmente espancado e torturado, mas seguiu se recusando a delatar o paradeiro de Carlos Lamarca, o líder do MR-8. O estudante foi amarrado a um jipe e arrastado pelo pátio da Base Aérea do Galeão. Depois, foi obrigado a aspirar os gases tóxicos que saíam do escapamento do veículo.
Stuart foi torturado até a morte. Ele tinha 25 anos. Seu corpo nunca seria encontrado. Conforme relatado por Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa no livro “Desaparecidos Políticos”, corpo de Stuart teria sido jogado em alto mar. Outras fontes alegam que o jovem foi enterrado como indigente em um cemitério nos subúrbios do Rio de Janeiro.
Os desfiles-protestos
Zuzu foi informada de que Stuart havia sido capturado pelos militares através de telefonemas anônimos. Ela deu início a uma busca incessante pelo filho, espalhando panfletos com sua foto e peregrinando por delegacias, quartéis e sedes dos órgãos militares.
A estilista decidiu utilizar sua visibilidade internacional para pressionar a ditadura militar a revelar o paradeiro de Stuart. Em 1971, Zuzu realizaria o primeiro desfile de protesto da história da moda — a apresentação da “International Dateline Collection III”.
O evento foi realizado no consulado brasileiro em Nova York — para desespero do corpo diplomático, que foi pego de surpresa com a temática. Zuzu chegou ao desfile trajando um vestido preto, com um cinto repleto de crucifixos. Já as modelos desfilavam com faixas pretas nos braços, também aludindo ao luto.
As peças traziam manchas vermelhas, referenciando o derramamento de sangue. As estampas alegres, marcas registradas do trabalho de Zuzu, deram lugar a símbolos bélicos — uniformes militares, quepes, canhões, navios e aviões, evocando as Forças Armadas. Alguns vestidos traziam desenhos de palhaços segurando fuzis ou prestando continência.
Outras estampas aludiam às prisões políticas no Brasil, como as imagens de pássaros engaiolados e de um sol atrás das grades. Havia, por fim, muitas figuras de anjos. Antes alusões ao seu sobrenome e à sua grife, os anjos agora simbolizam as vítimas do regime, sendo por vezes retratados feridos ou amordaçados.
A mensagem foi compreendida. Jornais como o “Montreal Star” e o “Chicago Tribune” deram destaque ao protesto de Zuzu e falaram sobre o desaparecimento de Stuart. A rede de televisão NBC também produziu uma matéria sobre o desfile. Em contraste, a grande maioria dos jornais no Brasil ignorou o ocorrido.
Em 1972, Zuzu organizaria mais um desfile-protesto em Nova York, novamente marcado pelo uso de estampas aludindo à repressão do regime militar. Em maio desse mesmo ano, a estilista recebeu uma carta de Alex Polari informando-a sobre a morte de seu filho. Alex estava preso no mesmo local onde Stuart fora detido e torturado.
A campanha por justiça e o assassinato de Zuzu
Zuzu continuou pressionando os militares a revelarem o que fizeram com o corpo do seu filho. Ela se uniu a familiares de vítimas da ditadura para organizar movimentos de luta por justiça e entrou em contato com a Anistia Internacional e outras entidades dedicadas à defesa dos direitos humanos.
Baseando-se na dupla cidadania do filho, que também era cidadão norte-americano, Zuzu tentou sensibilizar as autoridades nos Estados Unidos para sua causa. Seus apelos levariam Ted Kennedy a citar Stuart em um discurso na tribuna do Senado. Em 1976, Zuzu entregaria pessoalmente ao Secretário de Estado Henry Kissinger um dossiê sobre o desaparecimento e assassinato de seu filho.
A pressão internacional exercida a partir da campanha de Zuzu causou estragos à imagem da ditadura e forçou os generais a trocarem o alto comando da Aeronáutica, resultando na queda do Ministro Márcio de Souza Mello e dos brigadeiros João Paulo Moreira Burnier e Carlos Affonso Dellamora.
A campanha de Zuzu incomodou os militares. A estilista passou a sofrer ameaças e intimidações. Ela era seguida em seus trajetos pelo Rio de Janeiro e passou a ser vigiada constantemente.
Dias antes de sua morte, Zuzu entregou a Chico Buarque um documento, pedindo para que fosse publicado caso algo lhe acontecesse. “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”, dizia um trecho da nota.
Zuzu Angel morreu em 14 de abril de 1976. As autoridades policiais classificaram sua morte como um acidente automobilístico. O Karmann-Ghia dirigido por Zuzu teria derrapado na saída do Túnel Dois Irmãos e capotado em um barranco após se chocar contra a mureta de proteção.
O reconhecimento do crime e as homenagens póstumas
As filhas de Zuzu não aceitaram a explicação e pressionaram pela exumação do corpo para realização de análise forense. A versão da polícia seria posteriormente desmentida por testemunhas oculares, que afirmaram ter visto o carro de Zuzu ser abalroado e jogado para fora da pista por outro veículo.
Em 1998, a Comissão de Desaparecidos Políticos reconheceu oficialmente que a morte de Zuzu Angel ocorreu em consequência da repressão do Estado.
Novas informações sobre o assassinato da estilista foram obtidas em 2014, no âmbito da Comissão Nacional da Verdade. Em depoimento, o ex-agente do DOPS Cláudio Antônio Guerra identificou a presença do coronel do Exército Freddie Perdigão Pereira em uma fotografia feita logo após o capotamento do carro de Zuzu — o que comprova a presença dos militares na cena do crime.
Em 2019, a jornalista Hildegard Angel recebeu as certidões de morte de sua mãe e de seu irmão, atestando que ambos foram vítimas de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política do regime ditatorial de 1964 a 1985”.
Zuzu Angel foi homenageada na canção “Angélica”, composta por Chico Buarque em 1977. Ela também inspirou o romance “Em Carne Viva”, publicado por José Louzeiro em 1988. Sua jornada foi tema do samba-enredo “Quem é Zuzu Angel? Um anjo feito mulher”, apresentado pela escola de samba Em Cima da Hora em 1998.
Em 2006, foi lançado o filme “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende, retratando a vida da estilista, interpretada por Patrícia Pillar. A memória da luta de Zuzu e seu legado para a moda brasileira são preservados pelo Instituto Zuzu Angel, fundado por Hildegard em 1993. Desde 2017, Zuzu Angel é reconhecida como Heroína do Brasil, tendo seu nome inscrito no Livro de Aço do Panteão da Pátria.
Fonte: Opera Mundi