Em carreira solo ou com os Tribalistas, o cantor e compositor Arnaldo Antunes tem pavimentado uma estrada de tijolos amarelos no descampado da MPB e do pop nacional. Seu recém-lançado álbum Novo Mundo prossegue a caminhada idílica de sempre, por exemplo no refrão de “Pra Não Falar Mal”, um dueto com a jovem cantora e compositora Ana Frango Elétrico. De melodia atraente e versos em tons azul e rosa, a canção enumera explicitamente seus objetivos: “Pra melhorar a gente precisa ter mais cuidado/ pra não falar mal de ninguém/ não pensar mal de ninguém/ pra não ficar mal com ninguém/ não querer mal a ninguém”. Será possível “não ficar mal com ninguém”, como prega a meta mais loquaz da canção?
Vai longe o passado impiedoso com os Titãs, que empastelavam instituições e personalidades em tempo de rock – em “Igreja”, “Polícia”, “Família”, “Homem Primata” (1986), “Nomes aos Bois” (1987), “Miséria”, “Racio Símio” (1989) etc. Sozinho ou (sobretudo) no trio neo-hippie formado com Marisa Monte e Carlinhos Brown, Arnaldo vem pavimentando uma estrada pós-roqueira, em que um bom-mocismo de maturidade se apossa de todo e qualquer espaço que a rebeldia juvenil já tenha ocupado. “Nem só porque tomou um caldo vai ser contra a maré”, explicita no novo álbum a faixa “Tire o Seu Passado da Frente”.

(Foto: Cássio Abreu / Flickr)
Contundente e engenhosa, essa última canção gera um receituário politicamente correto, mais palpável no idílio do artista que na realidade nua e crua: “Não é porque foi oprimido que vai virar opressor/ não é porque foi abusado que vai ser abusador/ não é porque foi detido que vai virar ditador/ não é porque foi desmamado que vai ter medo de amor”. A prescrição almeja um novo mundo melhor sob fundo religioso, misturando o ativismo contra a tirania com o manjado “dar a outra face” do catolicismo: “Não é porque foi desprezado que só vai dar pontapé”.
Fora do refrão compartilhado graciosamente com Ana Frango Elétrico, “Pra Não Falar Mal” oculta um outro tom, mais áspero. “Não seja impaciente com quem é impaciente com você”, “não seja intransigente com quem é intransigente com você”, “não seja tão opaco com quem não é transparente com você”, formula o autor, conduzindo no limite à fórmula (não explicitada) de que não se combatem fascistas com mais fascismo. Parece construtivo, mas é também ambíguo. A fileira de sentenças no imperativo camufla um fundo autoritário e negativo, marcado com insistência por “não seja”, “não seja”, “não seja”, “não seja”. Num trecho declamado, o narrador arremata, impositivo e arbitrário: “Pureza e quietude são o padrão de medida do mundo”.
O próprio título do álbum, Novo Mundo, parece sinalizar a permanência do bom-mocismo e da rejeição categórica ao conflito e à turbulência num mundo que, afinal de contas, nunca foi um mar de rosas. Felizmente, o caso é mais complexo, e o mundo novo preconizado por Arnaldo na faixa de abertura é na verdade um desvio trôpego dos tijolos dourados, rumo a terreno mais pantanoso.
Nada celebratória, “Novo Mundo” é uma canção que comenta as faces mais sombrias do presente, seguindo as pegadas de uma importante peça anterior de Arnaldo, a antibolsonarista “O Real Resiste” (2020). “Nos meets do OnlyFans não tem romance”, “se tem o Google para quê memória?”, “o forasteiro se tornou um inimigo pra quem de sua ignorância se orgulha”, ironiza o narrador. O rapper baiano Vandal vem complementar a crítica contumaz de “Novo Mundo”, entre comentários como “futebol agora é bet”, “seu dinheiro é bitcoin” e outros pesadelos dos tempos de agora. “Não há como fugir dessa panela”, sintetiza Arnaldo, menos otimista e edulcorado do que sempre, ainda que o refrão “bem-vindo ao novo mundo que vai se desintegrar no próximo segundo” procure escamotear uma brisa que é mais de fim do mundo que de “um novo mundo é possível”.
Já ao final do álbum, em “Tanta Pressa pra Quê?”, mais uma vez a visão açucarada do tribalismo se turva diante do real. “Todo mundo tem opinião o tempo todo/ todo mundo tem algo a dizer”, reclama um sujeito pessimista disfarçado de otimista, aqui menos preocupado com os avanços fascistas que com o alarido de opiniões, xingamentos e cancelamentos nas redes sociais. Sem ter por onde fugir, a letra ressalta o desespero e a desesperança: “Todo mundo tem opinião o tempo todo/ pare o mundo que eu quero descer”. Se até Arnaldo Antunes está cabreiro com a matéria de que se está fazendo nosso admirável mundo novo, talvez seja o caso de manter ligados o pisca-pisca e as antenas.
(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)
Fonte: Opera Mundi