A vida dos economistas anda muito fácil. Com toda a incerteza ao redor do caos das tarifas de Donald Trump, o mercado da futurologia está suspenso e estamos todos sem o que fazer. No entanto, se não há previsões a fazer, podemos tentar mapear o caminho por onde a incerteza navega.
Entendo que há três “camadas” de crise e incerteza: os mercados financeiros, a incerteza dos investimentos e, por fim, a aceleração do afastamento entre China e Estados Unidos.
(Foto: The White House / Flickr)
Nosso primeiro pensamento sobre uma guerra tarifária é pensar na produção: será que vale a pena migrar a produção de aço, sapatos, chips e outros bens de um país para outro para contornar tarifas? Será que os produtos chineses ou vietnamitas antes destinados aos Estados Unidos serão comercializados em outros países? Será que o agronegócio brasileiro vai tomar o mercado das commodities agrícolas estadunidenses?
O problema é que vivemos em um mundo financeirizado. A primeira reação ocorre sempre nos mercados financeiros e dali se propaga para a economia real. Especuladores tentam adivinhar, muitas vezes baseados em meros boatos ou tuítes, quem ganha e quem perde com as ações concretas.
Muito antes de uma empresa ser forçada a assumir um prejuízo por conta das tarifas, ela já pode ter sido declarada insolvente pelas bolsas com base em especulações. No jargão do mercado, há uma tentativa de “trazer a valor-presente” os efeitos futuros das tarifas. A própria opinião dos operadores de mercado começa a ter efeitos reais, pois dificulta financiamentos e rolagem de dívidas.
A primeira camada: os mercados financeiros
Por isso, a primeira camada da crise criada por Trump veio dos mercados financeiros. E veio do principal mercado dentro do ambiente financeiro: o mercado de títulos do tesouro americano.
Este mercado tem um tamanho maior que o PIB estadunidense e mistura atores muito diferentes: de um lado, países superavitários que acumulam reservas em dólar, como China, Rússia, Brasil e as monarquias do petróleo, que mantém posições de longo-prazo; de outro, fundos de investimentos que operam altamente alavancados para transformar as margens pequenas desse mercado em lucros significativos.
O “liberation day” (dia da libertação) de Trump, com sua tabela tosca de tarifas, abriu um período conturbado no mercado de títulos estadunidenses. De um lado, quem consegue vender ativos menos líquidos, como ações e debêntures privadas, migra para as Treasuries, os títulos públicos. Ao mesmo tempo, os títulos estadunidenses são o ativo mais fácil de converter em dinheiro líquido para os agentes financeiros pegos com as calças na mão. Rumores de que o Japão e a China estariam desovando parte de suas enormes posses ajudaram a balançar ainda mais o barco.
Aparentemente, foi o tumulto no mercado de títulos da dívida que fez Trump recuar e adiar a implementação de tarifas contra 75 países, além de reduzi-las para apenas 10%. Trump não quis pagar para ver os títulos de dez anos da dívida estadunidense alcançarem a marca de 5% de juros. Todo o endividamento interno do país está assentado ali e a escalada de juros ameaça a renda das famílias via hipotecas de juros variáveis e outras dívidas.
A segunda camada: o vai-e-vem das tarifas
A segunda camada da crise está vindo da incerteza criada pelo vai-e-vem de tarifas. O investimento produtivo fica em suspenso nessas situações. Não há como decidir sobre a instalação de novas unidades produtivas ou a modernização das atuais sem formular cenários futuros sobre o comércio internacional. Como calcular a expectativa de receitas de uma fábrica de calçados se sequer sabemos se o mercado para os produtos existe? Ou qual será o custo para entregar o produto para os consumidores?
A situação está tão grave que até as operações correntes estão sob incerteza. Uma carga que sai da China hoje não sabe quanto de imposto pagará quando chegar aos Estados Unidos daqui a 30 dias. O exportador não sabe se o importador terá condições de pagar e se irá honrar preços e contratos estabelecidos. Declarações de “force majeure” (motivos de força maior) aparecem no horizonte e tornam os pagamentos incertos.
Com o investimento e até as operações em ritmo devagar, já estamos observando movimentos emergenciais por parte de governos para refazer conexões de cadeias de suprimento. Parcerias inusitadas como a abertura da União Europeia para os carros elétricos chineses começam a surgir para que um lado continue tendo acesso aos bens e o outro às vendas. Inimigos históricos como China, Coreia do Sul e Japão sentam para conversar. A carne brasileira se torna mais disputada para substituir a produção estadunidense.
A terceira camada: “decoupling” China e EUA
A terceira camada da crise é a desvinculação gradual entre as economias da China e dos Estados Unidos. Este movimento já está em curso desde o primeiro governo Trump: a China tem reduzido sua dependência de exportações para os Estados Unidos e o percentual de reservas internacionais mantidas em dólares.
Em um horizonte mais longo, a China dá continuidade à construção de um sistema financeiro alternativo ao Swift, controlado pelos Estados Unidos, e tem superado com sucesso praticamente todas as tentativas de estrangulamento tecnológico impostas via sanções.
Esta camada, mais estrutural e de longo-prazo, tem sido praticamente o único objeto de análise de cenário na esquerda. Faltam, no entanto, análises nos níveis conjuntural e até jornalístico, pois é nestas camadas que se darão as oportunidades para construção de um giro da política brasileiro em direção a maior integração com os BRICS.
Fonte: Opera Mundi