O aumento da imigração a Portugal nos últimos anos tem gerado um crescimento, também, no número de casos de discriminação e ameaças contra pessoas estrangeiras que solicitam vistos ou pedidos de residência para viver no país.
Hoje 15% da população em Portugal é formada por imigrantes. Os dados estão no relatório preliminar divulgado nesta terça (08/04) pelo governo do primeiro-ministro Luís Montenegro.
O documento que Opera Mundi teve acesso revela que o número de estrangeiros duplicou nos últimos três anos, atingindo mais de 1,5 milhão de residentes em um país com menos de 11 milhões de habitantes.
Porém, a estimativa do próprio Executivo é a de que esse número chegue a 1,6 milhão devido aos processos pendentes na Agência para a Integração, Imigrações e Asilo (AIMA). Com o fim da Lei de Manifestação de Interesse em junho do ano passado, milhares de pessoas caíram numa espécie de “limbo”, perdendo a possibilidade de regularizarem sua situação no país.
Antes, o imigrante podia solicitar a autorização de residência já em território nacional, mediante apresentação de contrato de trabalho e, pelo menos, 12 meses de contribuições para a previdência social.
Desde o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a criação da AIMA – ambas as medidas concretizadas em 2023 –, o Estado não tem conseguido solucionar nem mesmo o atraso das renovações e as entregas de documentos. Uma das formas usadas para tentar resolver o problema é a publicação de uma série de decretos para aumentar o prazo de validade desses títulos.
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Estima-se que, atualmente mais de 440 mil pessoas que tiveram tempo de utilizar a lei de manifestação aguardam por um atendimento na AIMA, e outros 220 mil esperam a chamada para a troca dos títulos de residência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Essas situações têm impactado diretamente a vida de quem trabalha e coopera com o desenvolvimento do país. Em 2024, a contribuição dos estrangeiros para a Segurança Social (previdência) foi de 3,6 bilhões de euros, valor cinco vezes superior ao que foi pago em subsídios e prestações sociais.
Diante desta crise generalizada, agravada pelo discurso anti-imigração propagado pela extrema direita e outros setores conservadores, e pela queda do atual governo, muitos imigrantes têm relatado longos períodos de espera, falta de informações precisas, bem como denúncias de discriminação e desrespeito aos direitos básicos de qualquer cidadão.
Stefani Costa
Medo de ser deportada
Maria (nome fictício), uma imigrante brasileira portadora do vírus HIV e outras comorbidades, recebeu uma carta de afastamento do território português em março deste ano sem nunca ter conseguido sequer um agendamento na AIMA para regularizar a sua situação.
Em 2022, um médico do Centro Hospitalar de Lisboa Central emitiu uma declaração indicando que Maria não pode voltar ao Brasil, pois “necessita de tratamento antirretroviral não disponível em seu país de origem”.
Natural de Minas Gerais, a imigrante de 61 anos passou a ser atendida pela advogada Erica Acosta após um pedido da assistente social que acompanha o caso. “Finalmente conseguimos um agendamento para que ela seja atendida na AIMA, mas, infelizmente, não podemos afirmar com certeza se o processo terá um resultado positivo”, explicou a advogada.
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Erica reforça que essa é outra realidade que causa uma estranheza profunda, já que o Estado Democrático de Direito, balizado pelo princípio da boa administração, precisa garantir o direito de todo cidadão a receber um tratamento digno e célere do serviço público.
A SOS Racismo e outras entidades também denunciaram as falhas sistemáticas tanto no atendimento da AIMA, como no Instituto dos Registos e do Notariado. Em comunicado, as associações alertam ainda para os episódios de discriminação contra imigrantes do Timor-Leste, que estavam pagando uma taxa de regularização sete vezes maior em comparação com os demais cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Reprodução
O que diz o governo
Durante a última Cúpula Luso-Brasileira realizada no mês de fevereiro, em Brasília, o primeiro-ministro Luís Montenegro afirmou em coletiva à imprensa que o seu governo vem trabalhando para zerar os processos pendentes de regularização de imigrantes e garantir que todas as autorizações de residência caducadas sejam renovadas dentro do prazo legal.
Entretanto, na página destinada à renovação de autorização de residência vinculada ao Ministério da Justiça, há apenas um aviso de que os serviços do Notariado estão a contactar os cidadãos com documentos vencidos, mas não é isso que tem acontecido, afirma Erica, que já emitiu diversas ações judiciais para que os seus clientes sejam atendidos pela AIMA.
Além do Decreto-Lei 41-A/2024, foram criados 20 centros de missão para atender os mais de 400 mil estrangeiros que solicitaram residência em Portugal antes do fim da Lei de Manifestação de Interesse, instrumento extinto no ano passado através de um decreto assinado em tempo recorde pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
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Em fevereiro, a AIMA também anunciou o início da troca dos mais de 200 mil documentos oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Estes títulos, que garantem a legalização de imigrantes em território nacional, haviam sido emitidos em folhas de papel A4, sem seguir os padrões do cartão de plástico exigido pela União Europeia.
Outro momento de pânico entre imigrantes aconteceu no início desta semana, quando o então ministro da Presidência, António Amaro Leitão, fez uma declaração sobre a possibilidade do governo aumentar o prazo de concessão da nacionalidade portuguesa.
Atualmente, a lei diz que o imigrante que possui cinco anos de permanência legal tem direito a entrar com o pedido de cidadania. Hoje, mais de 230 mil processos dessa natureza estão pendentes nos cartórios de todo o país. No dia 18 de maio, Portugal vai para a sua terceira eleição legislativa em três anos, gerando mais incertezas sobre o futuro das políticas migratórias.
Stefani Costa
Impedido de viver com a família
Opera Mundi teve acesso ao caso de um imigrante iraniano que teve o seu atendimento negado por uma funcionária da Agência para a Integração, Migrações e Asilo de Espinho, região centro-oeste do país. Ela se recusou a iniciar o processo de reagrupamento familiar mesmo com um agendamento prévio oriundo de uma ação judicial.
O imigrante, que preferiu não revelar a identidade por medo de represálias, solicitou o pedido portando o decreto-lei 41-A/2024, que prorroga a validade dos títulos de residência vencidos para todos os fins legais até 30 de junho de 2025. Porém, a atendente alegou que não poderia iniciar o processo porque o documento estava vencido desde o dia 12 de janeiro. Ela também teria dito que o decreto só permite a sua permanência no país, o que não é verdade.
Impedido de fazer a entrega dos documentos para o reagrupamento, o imigrante, que trabalha com TI em Portugal desde 2022, foi obrigado a se retirar da loja. Aflito com a situação, ele ligou imediatamente para a sua advogada, que o aconselhou a retornar ao local com o decreto-lei nas mãos e pedir uma reavaliação. Em último caso, se não fosse atendido, ele poderia exigir prestar uma queixa no Livro de Reclamações, segundo a defensora.
A advogada Erica Acosta disse à reportagem que o seu cliente voltou a ser desrespeitado na AIMA no momento em que pediu o livro, e a atendente se negou a entregá-lo. Em Portugal, todos os estabelecimentos públicos devem ter um Livro de Reclamações à disposição de qualquer cidadão, e que o atendente não deve questionar os motivos pelos quais o livro foi solicitado, pois a entrega é obrigatória para que a queixa possa ser registrada.
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“O decreto-lei diz que todos os títulos de residência são válidos até o final de junho para todos os fins legais. Ou seja, iniciar um processo administrativo de reagrupamento familiar é um fim legal. Enquanto este cidadão não conseguir reagrupar a família, ele está tendo um direito fundamental violado, que é o direito ao convívio familiar”, relatou Acosta.
Depois de conseguir registrar a queixa no Livro de Reclamações, o imigrante se dirigiu ao Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), mas também não foi atendido. Ele só conseguiu iniciar o processo de reagrupamento familiar no dia 20 de março, mas deve receber novamente uma notificação para a entrega do título renovado.
“Seremos obrigados a acionar o IRN e a AIMA com mais uma ação judicial, caindo num círculo burocrático vicioso que viola o princípio da segurança jurídica. Portugal é regido por normas que devem ser respeitadas pelos cidadãos e pelo próprio Estado. Negligenciar isso é de uma gravidade profunda”, denunciou a advogada.
O iraniano, que já comprou a passagem da esposa para que ela possa viajar com a sua documentação válida, disse a Opera Mundi estar desesperado com a situação.
“Naquele momento não consegui responder a ninguém, tamanha a frustração. Acho que contar a minha história pode ajudar outros imigrantes como eu, que também estão enfrentando os mesmos constrangimentos, correndo o risco até mesmo de perderem os seus postos de trabalho por não conseguirem renovar os seus documentos”, desabafou.
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‘Sem lenço, sem documento’
Outro caso relatado à reportagem de Opera Mundi aconteceu na AIMA de Setúbal, região metropolitana de Lisboa. Após 3 horas de espera, um imigrante de nacionalidade angolana, que tinha uma ação judicial de substituição do título CPLP pelo tradicional, não foi atendido, resultando em mais um episódio flagrante de insegurança jurídica.
A advogada Carine Silva disse à reportagem que dados de seu cliente não foram coletados porque, segundo o funcionário da AIMA, mesmo com a existência do decreto-lei, eles não possuem um sistema informático capaz de processar essa alteração e que somente alguns postos da missão de urgência criados pelo governo possuem condições para atender pedidos da CPLP.
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“Eu fiquei impactada com a situação porque a funcionária da AIMA deixou claro que não existe no sistema nenhum meio de tirar os títulos das pessoas que se enquadram na Lei 40/2024, que estabelece um regime transitório após o fim da Lei de Manifestação de Interesse. Ou seja, as pessoas estão pagando, tirando foto, mas, na verdade, nada de concreto está sendo feito”, alega Carine.
Erica Acosta reforça que muitos imigrantes nessas situações sentem medo de contar suas histórias com receio de sofrerem ataques ou perderem seus postos de trabalho. Ela finaliza a explicação dizendo que a maioria não tem condições financeiras para acionar a justiça. Na tentativa de criar uma rede segura, Erica e outros profissionais especializados em imigração criaram um grupo de WhatsApp para trocar informações e dividir relatos de casos de abusos contra imigrantes.
“É de conhecimento geral que a AIMA não está conseguindo cumprir os prazos, nem sequer fazer os agendamentos para pedidos de concessão de autorização de residência. Se continuarmos vivendo isso, vamos chegar em um momento de anomia em que as leis não são mais respeitadas. E isso é gravíssimo”, concluiu.
Fonte: Opera Mundi