Londres sedia nesta terça-feira (15/04) uma conferência sobre o Sudão, com o objetivo de mobilizar a comunidade internacional para pôr fim à guerra civil que devasta o país do nordeste da África há exatos dois anos. O conflito já deixou milhares de mortos e 13 milhões de deslocados. Segundo a ONU, atualmente 30 milhões de pessoas estão desesperadamente necessitando de ajuda, ameaçadas pela fome, o que configura a maior crise humanitária do mundo.
A guerra no Sudão começou em 15 de abril de 2023 como uma disputa de poder entre as Forças Armadas Sudanesas, sob as ordens do general Abdel Fattah al-Burhane, e paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FSR), controladas pelo ex-adjunto do chefe do Exército, Mohamed Hamdane Dagloque. Os dois militares disputam o controle de áreas do país.
“Continuar a ignorar o Sudão terá consequências catastróficas” para o país, que está entrando em seu terceiro ano de guerra civil, mas também para a região, alertou nesta terça-feira o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (HCR).
“Devemos fazer todo o possível para alcançar a paz no Sudão. A ajuda humanitária e o apoio ao desenvolvimento devem ser fortalecidos. Continuar a ignorar o que está acontecendo terá consequências catastróficas”, escreveu o Comissário Filippo Grandi em um comunicado.
No documento, Grandi alerta também os europeus sobre a chegada de refugiados sudaneses devido à falta de ajuda adequada.
A conferência em Londres é coorganizada pelo Reino Unido, União Europeia, Alemanha, França e União Africana e reúne ministros de 14 países, incluindo Arábia Saudita e Estados Unidos, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores.

Vista da destruição em uma escola em Darfur Ocidental que servia de abrigo para pessoas deslocadas
População sofre
Os correspondentes da RFI na região ajudam a compreender o que se passa, ao darem voz ao povo sudanês.
Rada Adam Abdelrahman Matar havia chegado há apenas algumas horas em Adré, no lado chadiano da fronteira, no posto de primeiros socorros da Cruz Vermelha. Depois de deixar Nyala, capital de Darfur do Sul, no lado sudanês, três dias atrás, ela estava exausta. A mulher disse não ter tido escolha a não ser fugir. ”A guerra não vai parar”, lamenta.
Rada conta que a família foi forçada a sair, que tem passado fome e está sofrendo muito com a situação.
“Meus filhos não têm nada para comer. E não temos dinheiro. Muitas vezes não comemos o dia todo, e podemos ficar até dois ou três dias sem comer nada. A fome está disseminada por todo o Sudão e é por causa da guerra”, diz Rada.
Nimat Haroun Khamis Mahamad, 26 anos, tem quatro filhos e também vinha de Nyala. Ela cruzou a fronteira ao mesmo tempo que Rada. “Os aviões nos bombardeiam e depois vão embora. Muitas vezes isso acontece no meio da noite, enquanto estamos dormindo”, conta. “Um bombardeio matou minha tia e seus seis filhos em sua própria casa”, continua.
No último ano, Mahmoud Mahamat Bahri, um chadiano de 56 anos, tem viajado entre as duas cidades fronteiriças: Adré, no lado chadiano, e Adinkon, no lado sudanês. Foi ele quem trouxe as duas mulheres em sua carroça. Ele viu muitos refugiados chegarem nos últimos doze meses. ”Eles estão sem dinheiro”, diz o carreteiro. “A situação é dramática. Eles estão tão famintos e podem comer qualquer coisa”, observa.
“Só pele e osso”
Após um ano e meio de derrotas e recuos diante dos paramilitares, o exército sudanês se impôs, no final de 2024, no centro do país. Assumiu o estado de Sinnar, depois al-Jazirah e, mais recentemente, no final de março, a capital Cartum. No coração da cidade, o palácio presidencial agora é controlado pelo exército. A FSR e seus aliados planejaram anunciar a formação de seu governo paralelo neste edifício altamente simbólico, mas foram pegos de surpresa.
Após dois anos de cerco, a saída da FSR foi um alívio para muitos moradores da capital. “Foi uma ótima notícia! Acordamos uma manhã e todos ao nosso redor estavam gritando: as RSF se foram!”, diz Hanaa, uma jovem de Omdurman, que explica como os paramilitares estavam atacando em seu bairro, destruindo casas, escolas e um posto de saúde. “Meus amigos e eu saímos para comemorar na rua”, acrescenta. “Faz tanto tempo que não saio à noite!”, diz.
“Nos bairros de Cartum ocupados pelos paramilitares os moradores sofriam”, diz Duaa, uma jovem mãe que mora no leste da capital. “Agora podemos sair e comprar comida sem riscos. Antes, você podia ser sequestrada por apenas US$ 2 (cerca de R$ 13), e para as mulheres, sempre havia o risco de serem estupradas”, acrescenta, aliviada. “Agora, podemos dormir em paz”, diz. “Não estávamos vivendo, estávamos sobrevivendo”, continua a jovem que trabalha em uma cozinha comunitária.
“Vemos pessoas de 30 anos que parecem ter 50, pois estão magras, cansadas, pálidas, só pele e osso. Vivemos em uma atmosfera de medo constante, e isso fica evidente em seus rostos”, afirma Duaa.
Muddathir, um jovem fotógrafo, lamenta o estado da capital. O centro, onde ficava a sua loja, parece uma cidade fantasma. “Não há ninguém nas ruas, as portas estão escancaradas, os prédios completamente vazios. A vegetação cresceu por toda parte, na rua, nos telhados”, relata. Quanto aos prédios importantes ou históricos, “foram incendiados, não sobrou nada lá dentro. Como o Museu Nacional, que foi saqueado. Eram objetos insubstituíveis”, lamenta.
Situação cada vez mais dramática no Sudão Ocidental
Recentemente, a FSR não admitiu uma retirada de suas forças, preferindo caracterizar a movimentação como “uma redistribuição”. Houve uma ameaça de atacar a região de Porto Sudão, onde atualmente está localizada a capital administrativa do país. Os combates estão concentrados ao redor da cidade de El-Fasher, em Darfur do Norte. A maioria dos membros da FSR que se retiraram de Cartum estão destacados nesta área. Pesados bombardeios também atingiram os acampamentos e cidades ao redor da cidade.
Na quinta-feira (10/04), a FSR anunciou que havia assumido o controle de Um Kadadah, uma cidade localizada quase 180 km a leste de El-Fasher. Na semana passada, bombardeios no mercado de Nifacha e no campo de Abu Shok mataram 25 civis e deixaram dezenas de feridos. Mas El-Fasher ainda está resistindo à FSR.
Há muito em jogo: a FSR controla o resto de Darfur. El-Fasher, que eles tentam tomar há um ano, é a última área da região a escapar do cerco. É a maior cidade de Darfur, dado seu tamanho e população, bem como o número de pessoas deslocadas que vivem nos campos ao seu redor, desde a guerra de 2003.
No domingo (13/04), paramilitares anunciaram que haviam tomado o controle de Zamzam, o maior campo de deslocados no Sudão. Segundo várias ONGs, desde 11 de abril, 20.000 pessoas chegam todos os dias a Tawila, uma cidade localizada a quase 70 quilômetros de Zamzam. Outros se refugiaram em El-Fasher, mais próxima.
“Após as recentes ofensivas, a situação em Zamzam se deteriorou significativamente”, explica Abdelkarim Yahya, um deslocado de Zamzam. A situação médica também se deteriorou. Os produtos alimentícios se tornaram escassos. Tudo isso acontece por causa do cerco de Zamzam e El-Fasher, que não permite que esses produtos sejam transportados para o acampamento.
“A vida ficou muito cara”, continua ele, “porque as Forças de Apoio Rápido fecharam todas as entradas do acampamento. Essas forças proíbem a entrada de alimentos. Felizmente, comerciantes que atuam no contrabando conseguem trazer produtos de Tawila. Mais de 70 aldeias ao redor de Zamzam foram saqueadas e incendiadas pela FSR. Seus habitantes fugiram. Alguns vieram para Zamzam, outros para Tawila”, descreve.
A FSR e seus aliados estão mais uma vez ameaçando tomar El-Fasher e pedem aos moradores que busquem refúgio em outros lugares. O pedido é acompanhado por um aumento nos bombardeios usando artilharia pesada ou drones. Há apelos para garantir corredores seguros para civis que deixam a cidade. O mesmo vale para os moradores do campo de Zamzam e de Abu Shok.
Comunidade de Massalit visada
O conflito que devasta o Sudão é caracterizado por extrema violência. Em 7 de janeiro de 2025, a FSR, composta principalmente por membros de tribos do oeste do Sudão, foi acusada por Washington de cometer genocídio em Darfur.
Os Estados Unidos acusam esses grupos de terem “assassinado sistematicamente homens e meninos — até mesmo bebês — com base étnica”, mas também por terem deliberadamente alvo mulheres e meninas de determinados grupos étnicos para estupro e outras formas brutais de violência sexual. Para o Departamento de Estado americano, “essas mesmas milícias têm atacado civis em fuga, assassinado pessoas inocentes que tentam escapar do conflito e impedido que os civis restantes tenham acesso a suprimentos vitais”.
Roda Abdessalam, 44 anos, é da cidade de El-Geneina, em Darfur. Ela mora no campo de Gorom, perto de Juba, capital do Sudão do Sul, e testemunhou a violência no oeste de seu país. Desde 2003, ela conseguiu sobreviver apesar da ameaça constante das milícias Janjaweed. Porém, quando a guerra eclodiu, em abril de 2023, a violência dos “herdeiros” das milícias Janjaweed, a FSR, multiplicou por dez, segundo ela.
“O que me levou a sair foi que a FSR mata homens e crianças e estupra mulheres. Eles estupram você na frente do seu marido e depois o espancam e matam na sua frente. E se você tem um filho menino, eles o matam. Mesmo que seja um bebê que você ainda esteja amamentando, eles o matam. A vida se tornou um inferno com esta guerra. Eles batem em você e podem fazer o que quiserem. Você não está seguro em nenhum lugar. É por isso que eu saí”, afirma Roda.
As imagens da violência ainda assombram os moradores, em particular as do assassinato de Khamis Abdallah. Em junho de 2023, o então governador de Darfur Ocidental denunciou o genocídio, o que levou ao seu sequestro e morte a tiros pela FSR. Seu corpo foi mutilado e arrastado pelas ruas de El-Geneina.
A memória desses massacres e dos ataques aos Massalit também continua a assombrar os campos de refugiados localizados no leste do Chade. As histórias de fuga de Darfur são terríveis.
Faïza Khatir, 20 anos, nasceu em El-Genaina. Ela chegou em 2023 ao acampamento Adré, no Chade. “Saímos de nossas casas”, lembra, “e viemos a pé. Caminhamos por dois dias para chegar a Adinkon, pouco antes de Adré. Houve saques na estrada. Pessoas estão sendo mortas, até crianças. Eu vi com meus próprios olhos”, lamenta.
Nesse conflito, ambos os lados são responsáveis pela violência comunitária. Milícias pró-governo têm atacado populações por motivos étnicos, devido ao seu suposto apoio à FSR, como no estado de Al-Jazirah, provocando ondas de represálias contra exilados sudaneses no Sudão do Sul.
Fome e insegurança alimentar aguda
O contexto de guerra e massacres contra civis abalou a economia do país e criou uma situação alimentar particularmente alarmante.
Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), quase metade da população enfrenta insegurança alimentar aguda. A organização da ONU estima que, em 2025, será necessário importar 2,7 milhões de toneladas de cereais (principalmente trigo) para cobrir as necessidades de consumo interno. Embora se espere que as próximas colheitas, particularmente de sorgo, sejam melhores este ano, os canais de distribuição estão prejudicados pelo conflito.
A guerra, a destruição e o controle das terras aráveis impedem os agricultores de cultivarem suas lavouras. Este é o caso em Darfur, Kordofan e especialmente no estado de Al-Jazirah, o celeiro do país. Armazéns, laboratórios, bancos de sementes e institutos agrícolas em Cartum e Wad Madani não foram poupados, de acordo com um estudo detalhado do think tank holandês Clingendael.
O conflito destruiu severamente a infraestrutura, especialmente estradas, explica a FAO, interrompendo as cadeias de suprimentos. Outros obstáculos são as barreiras e regras nas rotas, que estão em constante mudança. Um caminhoneiro disse à pesquisadora Annette Hoffmann que o trajeto de um veículo de mercadorias partindo de Porto Sudão para Darfur Ocidental pode levar um mês e deve passar por 25 postos de controle.
Muita mediação sem solução
A essa situação se somam as restrições financeiras: a crise econômica está interrompendo acordos habituais, como a entrega de insumos a crédito para pequenos agricultores. Embora o sistema bancário sudanês tenha conseguido se recuperar parcialmente, a falta de liquidez e a desvalorização da libra sudanesa estão pressionando os produtores e toda a cadeia de suprimentos, que já está sendo afetada pela inflação.
Ao longo de dois anos, todas as tentativas de mediação falharam. Sudão do Sul, Egito, Etiópia, Quênia, Somália, Uganda, Eritreia, Djibuti e Turquia, bem como a IGAD (Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento), propuseram iniciativas ou realizaram cúpulas, e todos esses estados ou organizações falharam.
Essas mediações, muitas vezes paralelas e descoordenadas, refletem as disputas regionais de poder neste conflito. Durante os primeiros meses da guerra, foram realizadas cúpulas em países africanos e árabes vizinhos para encontrar uma solução, mas nenhum cessar-fogo foi alcançado. Essas reuniões resultaram, principalmente, em declarações de preocupação sobre a deterioração da situação humanitária e apelos pelo fim da interferência. Porém, não conseguiram delinear uma solução duradoura.
Na semana passada, a Arábia Saudita e os Estados Unidos renovaram seus apelos para um retorno à mesa de negociações. Os dois generais adversários ignoraram completamente esse chamado. Ainda hoje, os dois beligerantes não desistem da ideia de uma vitória total sobre o adversário.
Fonte: Opera Mundi