terça-feira, abril 22, 2025

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Copyright Criminals: o sample e o hip-hop como movimento expropriador


No documentário Scratch, de 2001, ao revisitar o porão da loja de discos onde comprou a maioria dos vinis que usou na produção da sua obra-prima Endtroducing… – conhecido, dentre outras coisas, como um disco produzido quase que inteiramente a partir de samples –, o aclamado DJ Shadow reflete sobre todos aqueles discos empoeirados, jogados ao chão:

“Só de estar aqui é uma experiência humilhante para mim, porque você está olhando todos esses discos e é como uma grande pilha de sonhos desfeitos… Quer você queira admitir ou não, daqui a 10 anos você estará aqui. Então tenha isso em mente quando começar a pensar tipo, ‘Eu sou invencível e sou o melhor do mundo’, ou algo assim. Porque era isso que todos esses caras pensavam.”

Um dos precursores do movimento hip-hop, o DJ Grandmaster Flash durante apresentação no James Lavelle's Meltdown Festival, em 13 de junho de 2014. <br>(Foto: Victor Frankowski/Southbank Centre)
Um dos precursores do movimento hip-hop, o DJ Grandmaster Flash durante apresentação no James Lavelle’s Meltdown Festival, em 13 de junho de 2014.
(Foto: Victor Frankowski/Southbank Centre)

O sample, técnica de “cortar” trechos de uma gravação para usá-los em uma nova música, é, na visão de Shadow, uma forma de memória e resgate da música. Considerado o “godfather do sample”, Pierre Schaeffer, compositor conhecido pela criação da música concreta e do Club d’Essai, que teve participação ativa na Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, começou a fazer experimentos com loops, distorções e inversão de faixas musicais nos anos 1940. Já nos anos 1960, os Beatles produziram o álbum Revolution 9 utilizando samples. Mas foi na mão de DJ’s jamaicanos e afro-americanos que o sample ganhou seu espaço, o que tornaria o hip-hop num movimento singular no que se refere à forma como ele expropria tudo ao seu redor. Fossem os discos de jazz e soul, as tipografias de marcas famosas, ou as roupas criadas por Dapper Dan, que aliava a alta costura com estampas pirateadas de grifes famosas, o hip-hop engolia todo um mundo criado e gerenciado tanto pelos pequenos negócios de afro-americanos como as grandes indústrias, marcas e empresas em geral. Isso tem um apelo emocional e moral muito forte, visto que essa expropriação se dava, em parte, pelas condições sócio-econômicas em que negros, latinos, asiáticos, brancos, e todas as pessoas envolvidas na criação e desenvolvimento inicial do hip-hop se encontravam.





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Sendo muitos deles filhos e filhas de músicos de jazz – até então, um gênero ainda muito segregado, relegado a bares e clubes repletos de fumaça de cigarro, nos fundos de construções precárias –, o natural seria que esses jovens continuassem com a tradição de seus pais, como no caso de Nas, filho do jazzista Olu Dara Jones. Não foi exatamente o que aconteceu. O rap, enquanto expressão musical do hip-hop, se desenvolveu de forma acelerada, saindo da era disco, e chegando à era do jazz, do soul, das produções em Music Production Center (as famosas MPC), que se proliferavam cada vez mais. A forma de rimar também evoluiu, e quando chegamos à chamada Era de Ouro do Hip-Hop, entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990, o gênero já havia encontrado sua estética particular em cada costa dos Estados Unidos, além de uma maneira própria de se criar. Daí que os samples partem de um lugar específico, tanto pelo custo – no máximo, se gastava com os discos de vinil que eram usados nas produções, mas, em grande parte, esses discos faziam parte de acervos particulares desses pais-jazzistas –, como pela forma com que eles permitiram se apropriar de outras músicas, timbres, linhas de baixo, vocais, e qualquer outro som que pudesse ser replicado, originando uma nova música. A disputa entre os rappers e produtores era severa, mas sadia, para encontrar o melhor loop, o melhor timbre de funk. E geralmente eles saíam das lojas com seus discos guardados em sacolas opacas, ou retiravam o rótulo das bolachas, para que ninguém pudesse descobrir o sample utilizado. Um caso interessante é o da faixa Shook Ones II, considerada a 35ª melhor música rap de todos os tempos pela revista Rolling Stone, além de uma marca do que era o som novaiorquino. Foram necessários 16 anos – numa era em que ainda não existiam sites como WhoSampled, que identifica os samples utilizados em músicas – para que o sample finalmente fosse descoberto.

A magia do sample, evidentemente, carrega consigo questões como o debate sobre direitos autorais, e até mesmo discussões menos importantes, porém perigosas, como as afirmações, de músicos eruditos e donos de gravadoras, sobre “o rap não ser música” ou ser uma forma de sub-música pelo fato de que ele não contém instrumentos clássicos em sua produção. Por conta disso que o documentário Copyright Criminals é um ótimo ponto de partida para entender o sample, sua importância, e a visão de rappers, produtores e músicos que tiveram suas faixas sampleadas sem autorização, e até mesmo a visão embaçada de CEO’s de gravadoras e conglomerados de selos musicais.

Contando com a participação de grandes nomes da música, como Aesop Rock, Chuck D, D.J. Abilities, El-P, George Clinton e Clyde Stubblefield, além de magnatas da indústria musical, o filme faz um acerto de contas, de ambos os lados, sobre a história do sample, seu uso enquanto técnica, e suas implicações econômicas sobre a indústria musical. É digno de nota que Clyde, baterista de James Brown, criador da faixa Funky Drummer – a bateria mais sampleada da história do rap –, e Clinton, um dos fundadores do Parliament-Funkadelic, tenham relatos tão distintos sobre o tema. Enquanto Clyde lamenta o fato de não ter “recebido quase nada” pelo uso de sua clássica bateria, o fundador do Funkadelic e um dos pioneiros do gênero P-Funk afirma que o sample foi uma forma de revitalizar a sua música e a de seu grupo. Por outro lado, muitos insultos e falsas polêmicas são citadas no filme pelos gestores de grandes selos e conglomerados musicais, o que demonstra que o sample, mesmo na era do streaming, ainda é uma pedra no sapato do capitalismo de serviços.

Copyright Criminals, então, é uma ótima porta de entrada para as discussões sobre sample, indústria, e a vitalidade do hip-hop, além de uma reafirmação: onde houver precariedade de serviços, bens de primeira necessidade e formas arbitrárias de lidar com a cultura popular, lá estarão os agentes expropriadores, reinventando formas de criar a arte do proletariado e dos povos subjugados.

Copyright Criminals
Lançamento: 2009
Direção: Benjamin Franzen
Plataforma: Prime Video (e disponível de forma gratuita no YouTube).



Fonte: Opera Mundi

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