quarta-feira, abril 23, 2025

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Crônicas de um país em guerra


Ao longo de dois anos, o diretor ucraniano Sergei Loznitsa espalhou equipes de filmagens pela Ucrânia para registrar a situação do país em meio à guerra com a Rússia. Do material, se produziram dezenas de sequências reunidas no longa-metragem A invasão, uma colcha de retalhos da vida cotidiana. “Não se trata de um filme sobre a invasão russa ou a agressão russa em território ucraniano. É um filme sobre as consequências e o que acontece quando um país é invadido por um inimigo”, descreve Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes, onde o filme estreou no ano passado. O longa é exibido agora no Brasil na competição internacional do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.

Sem que estivesse presente em todas as gravações, a instrução de Loznitsa para suas diversas equipes era deixar a câmera ligada sem interagir com os personagens. Utilizando procedimentos clássicos do chamado “cinema direto”, sua ideia era que as equipes tentassem permanecer invisíveis e influenciar o mínimo possível na realidade retratada. O resultado são longas sequências com a câmera parada, em planos abertos, sem narração ou música e com poucos cortes. Formam-se quadros observacionais com cenas do cotidiano em tempos de guerra, que incluem casamentos, nascimentos, enterros, treinamentos militares e reconstruções do país.

Velório coletivo no espaço público. (Foto: A invasão (2024) / Reprodução)
Velório coletivo no espaço público. (Foto: A invasão (2024) / Reprodução)

Nas inúmeras cenas de funerais, militares carregam os corpos de seus colegas louvados como mártires da nação. Na repetição desta mise-en-scène esboça-se a fragilidade da vida dos que permaneceram diante das ausências dos que partiram. Nesse cenário, a exaltação do heroísmo diante da morte é um consolo para as famílias que perderam o ente querido e um estímulo para aqueles que, ao saírem do enterro, voltarão para o campo de batalha.





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Em A invasão, a manifestação da morte é entrecortada pelo ciclo de vida. No entanto, mesmo nos momentos de celebração, a sombra da guerra não sai de cena e se presentifica em uma militarização constante de tudo e de todos. Em uma das primeiras sequências do filme, assistimos a um desconfortável casamento no qual o terno do noivo dá lugar à farda. Após a cerimônia no cartório, o casal celebra dançando uma valsa no meio da rua, o que é sucedido pela cena de uma mulher que chora diante do caixão de seu marido. Em outra sequência mais à diante na obra, um jovem pai fardado carrega seu recém-nascido na maternidade, envolto em uma tensão de morte que abraça o início da vida.

Casal celebra seu casamento em meio à guerra. (Foto: A invasão / Reprodução)
Casal celebra seu casamento em meio à guerra. (Foto: A invasão / Reprodução)

O conflito se manifesta também na guerra contra a cultura e a arte. Na frente de uma livraria, livros são arremessados sem qualquer cuidado dentro de um caminhão. A perplexidade só aumenta quando entendemos a motivação da ação, ao vermos o destino do caminhão: um galpão, onde milhares de livros são colocados em uma esteira e, em seguida, esmagados e transformados em confete. Dentre as capas, identificamos obras de Dostoiévski, Tolstói e outros grandes nomes da literatura russa.

Sobre essa sequência, Sergei Loznitsa desabafa: “A ação de destruir é insuportável. Sou bibliófilo. Cada livro é uma ideia. Um livro destruído é uma ideia destruída. (…) Mas isso é o que está acontecendo”. O diretor também se posicionou publicamente contrário ao boicote a cineastas russos, o que desencadeou sua expulsão da Academia de Cinema Ucraniana em 2022.

Em seus mais de 30 filmes, dentre eles 25 documentários premiados, Loznitsa se dedicou a pensar a história e a memória da Ucrânia entre guerras e conflitos, a partir do colapso do Império Russo e do peso da União Soviética. A invasão é apontado como um díptico de outro longa-metragem seu lançado dez anos antes, Maïdan: Protestos na Ucrânia (2014), que retrata o levante civil em Kiev contra o governo do presidente Yanukovych.

A invasão tem exibições programadas nos próximos dias para São Paulo no É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. Os ingressos são gratuitos e disponibilizados uma hora antes do início de cada sessão. Mais informações sobre o evento estão disponíveis no site.

Serviço:
Cinemateca Brasileira – SP
06/04/2025 às 21h30

IMS Paulista – SP
12/04/2025 às 20h30

(*) Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, Nayla Guerra é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).



Fonte: Opera Mundi

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