“Por que deixam uma menina que é do mato, amar o mar com tanta violência?” Com esse manoelismo, comemoramos uma conquista brasileira: a extensão da nossa plataforma continental numa área que se estende do Amapá ao Rio Grande do Norte, incluindo a Foz do Amazonas, e com a dimensão da Alemanha.
Para quem perdeu ou se esqueceu dessas aulas de geografia, a plataforma continental é a extensão submersa da porção terrestre do continente. A parcela do oceano mais próxima das praias é a Zona Econômica Exclusiva, área que pode ser usada para exploração das águas e do subsolo em uma multiplicidade de atividades que vão desde a pesca à extração de petróleo submerso. A região também gera obrigações, como a conservação ambiental e o resgate de embarcações e pessoas.
(Foto: 3SG-MR Gustavo / Marinha do Brasil)
Mesmo sem muros visíveis ou marcos indicadores, as fronteiras no mar são reguladas pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Ou seja, não são “terra de ninguém”. A extensão da plataforma varia conforme a formação geológica do país, a presença de vizinhos interessados em áreas comuns, entre outras questões. Muitas disputas internacionais sobre o controle de ilhotas remotas não são, na realidade, pela ilha em si, mas pela localização geoestratégica daquele pedacinho de terra e seu entorno, para a exploração de recursos ou para a definição da Zona Econômica Exclusiva.
A atual desavença entre Venezuela e Guiana pela região de Esequibo tem esse componente. Embora a porção terrestre possua ouro, água e outros recursos, o mar territorial de Esequibo é rico em petróleo, em especial nas proximidades do delta do rio Orinoco, na Venezuela. A disputa entre os dois países tem mais de um século e vários capítulos que não cabem nesse artigo, mas reforçou-se depois de 2015, em função da descoberta do petróleo pela empresa estadunidense Exxon Mobil, que já explora a área. Esta seria apenas mais uma veia aberta da América Latina caso o governo venezuelano, que depois da revolução bolivariana não aceita mais os ditames dos EUA para a região, não resolvesse esquentar a temperatura da briga, mobilizando a população local e travando a disputa jurídica (e não militar) sobre o território, assim como o Brasil pleiteia o controle sobre suas áreas de interesse.
Em 2004 o Brasil iniciou o pedido de ampliação do seu território marítimo, processo que foi acelerado depois de 2006, com a descoberta do pré-sal. O pleito brasileiro recentemente vitorioso vem de 2017, num processo capitaneado pela Marinha, pela diplomacia, pela Petrobrás e por pesquisadores. Em fevereiro deste ano, a Comissão de Limites da Plataforma Continental, da Organização das Nações Unidas, aprovou o pedido brasileiro para a extensão no litoral Norte, também conhecido como Margem Equatorial. Ainda estão em análise dois outros pedidos brasileiros, referentes à extensão da “fronteira” na Região Sul e na Margem Oriental-Meridional.
O reconhecimento não impacta na disputa hoje estabelecida entre meio ambiente e petroleiras para a extração na foz do Amazonas, pois essa área já pertencia à Plataforma Brasileira. Entretanto, novas áreas ainda podem ser descobertas no território recentemente incorporado. Segundo a Petrobrás, caso as três solicitações sejam aprovadas, o Brasil tem potencial para ampliar em até 50% suas reservas de petróleo.
Quando vi o mar pela primeira vez, me ensinaram: “lagão bão pra criar pato”. Difícil explicar para uma criança nascida longe do mar o tamanho daquele mundo de água, de um azul que só tem fim no início do azul do céu. Hoje, é fácil saber que os ganhos econômicos com a extensão territorial são consideráveis. Mas a vitória comemorada aqui só faz sentido se pensada em conjunto com um projeto nacional e popular soberano. Caso contrário, não teremos uma Petrobrás estruturada, capaz de extrair os recursos; um Ministério do Meio Ambiente autônomo, que preserve a natureza para as gerações futuras; teremos um submarino nuclear, mas que fará a segurança das petroleiras estrangeiras; e o principal, não usaremos as riquezas naturais brasileiras para garantir uma vida boa para o próprio povo.
Justiça seja feita, batizar toda a região litorânea de Amazônia Azul foi uma excelente jogada de marketing da Marinha. Tem muito espaço entre as preocupações brasileiras a defesa da Amazônia, especialmente esse ano, com a COP 30. O que a Marinha tentou fazer foi despertar a atenção brasileira para a relevância do mar enquanto fonte de energia (95% do petróleo brasileiro é extraído nas águas), espaço comercial (95% do comércio exterior do país é marítimo) e trânsito das nossas comunicações com o mundo, através de cabos submarinos. Colocando em relevo a importância do mar, a Marinha consegue aumentar também a própria relevância.
Uma questão, entretanto, não surgiu. Ter a disposição mais recursos para explorar gera o ônus por defendê-los e preservá-los. Foi curioso não ler, nos últimos dias, sobre a “cobiça internacional” que paira sobre a região. Sejamos honestos, o Brasil tem uma política de defesa bastante descompensada. Embora a Marinha, o Exército e a Aeronáutica tenham seus próprios comandantes e, legalmente, o mesmo peso institucional, a diferença entre os efetivos e recursos das três forças é enorme. Grosso modo, é como se Marinha e Aeronáutica respondessem, juntas, por 30% da política de defesa brasileira, enquanto o Exército concentra 70%. Do Ministério da Defesa, então, nem se tem notícias.
Impossível não lembrar do quadro Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral, uma das principais telas do modernismo brasileiro. Nessa obra, uma figura humana está sentada numa posição pensativa em uma paisagem árida, com as cores da bandeira nacional. Mas essa figura tem um braço, uma perna, uma mão e um pé com dimensões enormes, e uma cabeça bem pequenininha.
Esse desbalanceamento entre as forças é resultado de uma estratégia defasada, pautada pela proteção das fronteiras terrestres por meio da ocupação territorial e da manutenção de efetivos para o combate ao inimigo interno, rebatizado de forças adversas ou perturbadoras da ordem. É também fruto da baixa disposição política para enfrentar o poder que o Exército concentrou ao longo de séculos. Com isso, perdemos repetidas oportunidades para repensar uma estratégia de defesa brasileira mais moderna, com ênfase no poder aeroespacial e marítimo.
Entretanto, fortalecer a Marinha não quer dizer, necessariamente, se modernizar. Da força marítima vieram Almirantes com refinadas reflexões estratégicas, como é o caso de Mario Cesar Flores, ou Othon Luiz Pinheiro da Silva. Mas também na Marinha seguem existindo os desejosos por um porta aviões, equipamento incompatível com uma estratégia defensiva, como é o caso brasileiro.
Atualmente, o Ministro da Defesa reúne os pleitos das três forças e os organiza numa estratégia que é um ajuntamento de demandas. Fortalecer o poder aéreo e naval implica em diminuir o tamanho do Exército, revisar a maneira como o recrutamento ocorre, a distribuição espacial das unidades militares, entre tantas questões. E isso só é possível com o controle civil sobre a política de defesa nacional. O controle não serve apenas para evitar que militares tentem golpes de Estado. Ele é quem pode enfrentar a inércia, o espírito de “sempre foi assim”, que predomina nos quartéis.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Fonte: Opera Mundi