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O complexo de favelas no Catumbi é chamado de Complexo do São Carlos, visão privilegiada do Sambódromo, a passarela das escolas de samba. Ponto turístico da cidade do Rio de Janeiro que fica especialmente iluminado durante o Carnaval.
O bairro do Catumbi, onde fica o Sambódromo, é um grande vale cercado por morros. Próximo a região central da cidade do Rio de Janeiro, as favelas do Catumbi foram formadas pelos estratos sociais pauperizados que precisavam estar perto dos locais em que as ofertas de trabalho eram mais promissoras.
Os fatos que irei narrar aconteceram quando o Complexo Penitenciário Frei Caneca ainda fazia parte da paisagem e o território ainda não era controlado pelo Terceiro Comando Puro (TCP). Do Morro avistávamos o presídio que ficava pertinho, no bairro do Estácio, no pé do Morro de São Carlos.
Num domingo tipicamente carioca, enquanto alguns desciam o morro para ir à praia, outros se deslocavam pelas vielas e escadarias para os cultos dominicais nas igrejas evangélicas. No sentido contrário, o pastor Fábio (nome fictício) subiu o Morro para participar do culto na sua igreja.
Cria daquela favela, estudou e foi o primeiro da família que conseguiu se graduar na universidade. Anel vistoso de bacharel para lembrar sempre que a conquista foi enorme. Sua ascensão social deu condições de comprar um apartamento ali pertinho no bairro do Rio Comprido. Aos domingos, ia andando até o templo da igreja para no caminho encontrar amigos de longa data e convidá-los para o culto.
Gostava de tomar o café da manhã de domingo na padaria da comunidade. Dois pães com manteiga na chapa e café pingado, no copo duplo. Belo pretexto para conversar e colher informações sobre a comunidade.
Na subida da escadaria, antes de chegar à igreja, inevitavelmente, passava pela boca de fumo. Conhecia os meninos, numa época em que os traficantes eram locais, nascidos e criados na comunidade. Pessoal que cresceu com ele naquelas ruas íngremes, amigos de infância, colegas do colégio, filhos das suas tias, amigos das suas irmãs, e inclusive, alguns frequentaram quando crianças e adolescentes a igreja que hoje ele pastoreava. Mas do que respeitado, o pastor era querido pelos traficantes que carinhosamente o chamavam de Fabinho.
Como sempre acontecia, foi o primeiro a chegar. Uma casa, sobrado antigo, adaptada para funcionar como igreja. Salão no térreo que servia como o templo, nos fundos, copa/cozinha e banheiro. No andar de cima, havia três salas e um banheiro. O pastor Fábio chegava antes para arrumar o local para receber os membros da igreja que chegavam após as 9h da manhã. Desta vez, a surpresa foi desagradável.
Entrou e imediatamente sentiu um cheiro horrível. Foi abrindo as janelas esbaforido, com ânsia de vômito. O pessoal ia chegar logo, por mais repulsivo que fosse, precisava localizar o foco do fedor. Imaginou que houvesse algum bicho morto no templo. Como a porta de entrada da casa correspondia aos fundos da sala adaptada como templo, de trás para frente foi olhando as cinco fileiras compostas por cinco cadeiras cada. Constatou que as cadeiras estavam limpas, bem como embaixo delas. Chegou na frente do templo e o mau cheiro se intensificou. Atrás do púlpito, no chão, exatamente no local que ele ocupava enquanto pregava e dirigia as celebrações, o dejeto.
Ficou furioso quando constatou que o excremento não era de um animal que invadiu a igreja, mas, era merda humana.
Lavou o salão inteiro. À medida que os irmãos iam chegando para o culto, constatado a agonia do pastor, se puseram a participar do mutirão, faxinaram tudo enquanto cogitavam quem teria cometido tamanho desatino. Não foi difícil chegar ao mesmo nome. Havia na comunidade um rapaz, dependente químico, que com certa frequência dormia na parte externa da igreja. Porém, nunca havia ultrapassado os limites tolerados. Dessa vez, além de invadir o templo, cagou no púlpito.
A hipótese foi confirmada pelos vizinhos da igreja que o viram pular o muro no sábado e sair no domingo cedinho, bem antes da chegada do pastor. A notícia correu.
Neste domingo o pastor desistiu de pregar do púlpito. Se reuniram numa das salas do segundo pavimento do sobrado. Terminada a cerimônia religiosa, fecharam janelas e portas com a máxima atenção. Boa parte dos irmãos subiram a escadaria, enquanto o pastor, pegou o sentido contrário. Ao descer, era inevitável passar pela boca de fumo. O rapaz que gerenciava o comércio de drogas naquele ponto da favela tomou a iniciativa.
– E aí, Fabinho, depois do culto com essa cara?
– Não é pra menos, né?
– O que foi?
– Vai dizer que você não sabe.
– Qualé?
– Cagaram no meu púlpito.
– Aí é esculacho!
– Agora tá limpo.
A breve conversa aconteceu enquanto o pastor descia as escadas e o traficante o seguiu por alguns degraus curioso com aquela estranha situação.
No fim da tarde, depois de ter assistido na televisão o primeiro tempo do campeonato carioca, aliviado pelo Vasco ter saída na frente, ganhando com vantagem de dois gols, o pastor Fábio botou a Bíblia debaixo do braço e foi para o culto da noite.
Ao passar pela boca, parecia que o traficante que mandava no pedaço o estava esperando. Lacônico o cumprimentou e comunicou.
– Fabinho, quem cagou no seu púlpito não caga mais!
Pregar o sermão da manhã havia sido difícil. Pregar no culto da noite foi impossível.
No limite da sua exaustão, o pastor teve uma crise de choro, no que foi acompanhado pelo seu pequeno rebanho.
Voltou para casa envergonhado, como se tivesse culpa pelo ocorrido.
Por mais que conhecesse aquela comunidade, não imaginou que a ética do tráfico se sobreporia a ética do evangelho, ainda que pregado de um púlpito cagado.
Fonte: ICL Notícias