quarta-feira, abril 23, 2025

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‘Meu pai foi vítima da violência no campo que a ditadura plantou’


Por Gabriel Gomes

Elias Diniz Sacramento, professor de História da Universidade Federal do Pará (UFPA), tinha 12 anos quando perdeu o pai, o ativista social Virgílio Serrão Sacramento, vítima de um “suspeito” atropelamento de caminhão, em Moju, no Pará, na década de 1980. Aqueles anos, em meio à ditadura militar e o processo de abertura democrática no Brasil, foram os mais sangrentos na luta pela terra no estado.

Além de Elias, Virgílio Sacramento deixou mais dez filhos na orfandade. Uma das filhas, Noemi, tinha seis meses quando seu pai foi morto, no dia 05 de abril de 1987. “Nós ficamos órfãos, sem apoio do Estado…A minha mãe ficou com 11 filhos órfãos, os três mais velhos já estavam praticamente formados no ensino médio. Para todos nós, foi muito difícil”, relembra Elias Sacramento.

Elias Diniz Sacramento, professor de História da Universidade Federal do Pará. (Foto: Reprodução)

O atropelamento do ativista por um caminhão madeireiro, a um quilômetro de sua casa, deixou marcas no asfalto que levam à conclusão de que não se tratava simplesmente de um acidente.

“Para os movimentos sociais, foi um crime planejado porque haviam muitas fontes que levavam a uma morte proposital. Meu pai não era só um ativista sindical, ele também era político, as pessoas almejavam que ele se candidatasse”, diz Elias.

A morte de Virgílio, aos 44 anos, se relaciona com a violência no campo plantada no período da ditadura que vigou de 1964 a 1985 no Brasil. Os militares, relata Elias, incentivaram a ida de empresários ao Norte do país para a expansão do agro e a implatação de indústrias, expulsando a população local.

O líder sindical lutava em defesa dos trabalhadores rurais de Moju desde o fim da década de 1970, quando ali chegaram os diversos projetos agroindustriais incentivado pelo governo dos militares.

“A morte do meu pai é muito relacionada à ditadura por conta do empresariado, os empresários queriam mais terras na região de Moju e isso fazia com que eles tentassem expulsar os trabalhadores, tirar os colonos de suas casas e meu pai fazia denúncias nos ministérios, nas secretarias, nos órgãos do governo e na imprensa de todos os problemas da região”, relata Elias Sacramento.

“Mesmo sendo após a redemocratização, meu pai figura em vários dos documentos como sendo um morto político da ditadura”, completa.

Virgílio Sacramento foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju, representante na Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará e foi tesoureiro da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no estado. Também ajudou na fundação do Partidos dos Trabalhadores (PT) no Pará.

Assim como outros ativistas, Virgílio colecionava ameaças de morte. Emocionado, Elias Sacramento recorda dos cuidados que o pai tomava durantes as viagens de bicicleta pelas estradas do interior do Pará. Ainda criança, Elias não tinha ideia de que o pai estava se protegendo diante das ameaças.

“Quando a gente saía à noite e vinha, ao longe, um carro com o farol alto, ele parava a bicicleta e encostava comigo no mato, na beirada, e a gente ficava lá até o carro passar para a gente poder seguir. Eu era uma criança, não tinha noção dessas coisas”.

Atualmente, Elias, doutor em História, luta para manter viva a memória do pai, Virgílio Serrão Sacramento. Na academia, pesquisa sobre as histórias de luta no campo no interior do Pará na década de 1980. “Eu fui criando esse amor e esse gosto pela história do meu pai, da luta pela terra em Moju e dos movimentos sociais”.

ditadura

Virgílio Sacramento foi tesoureiro da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no no Pará. (Foto: CUT-PA)

CCV promoverá o primeiro encontro de órfãos de camponeses mortos pela ditadura no PA

Nos dias 10 e 11 de abril, Elias Sacramento e outros familiares de lideranças sindicais, advogados e políticos que foram mortos na ditadura militar, por suas atuações em defesa de colonos, posseiros e trabalhadores rurais, se reunirão pela primeira vez, no seminário “As Políticas de Memória, Justiça e Reparação: as demandas dos desaparecidos, torturados e mortos pela Ditadura Militar no Pará”.

Noemi Sacramento com sua mãe, em 1988 e em 2025, no município de Moju. ( Foto: Reprodução /Arquivo pessoal)

“Essa realização tem uma importância muito grande porque nós vamos nos conhecer, de fato. Também é o momento de a gente tentar fazer a luta por justiça, por uma reparação e o reconhecimento de que nossos pais foram lutadores. O Estado não fez o que deveria ser feito, não cumpriu o seu papel”, diz Elias Sacramento.

O evento é promovido pela Comissão Camponesa da Verdade (CCV) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá, no Pará. O encontro ocorrerá na Assembleia Legislativa do Estado do Pará. Inicialmente, também marcaria a entrega das Certidões de Óbito dos mortos e desaparecidos políticos do estado do Pará, o que não foi possível por conta de um atraso na confecção dos documentos.

O evento contará com uma palestra sobre a política de memória, justiça e reparação para não repetição, ministrada por Nilmário Miranda, Chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. Também haverá uma palestra do membro da Comissão da Verdade Camponesa, Jerônimo Trecane, cuja temática será “Mortos e Desaparecidos no Campo, na Amazônia”.

‘Ainda estou aqui’ reacendeu uma chama importante, diz Elias

Nos últimos meses, o sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, reacendeu o debate sobre os crimes cometidos na ditadura, como o desaparecimento e o assassinato de pessoas. Muitos familiares estão, depois de muitos anos, conseguindo as certidões de óbitos dos assassinados políticos.

‘Ainda estou aqui’ reacendeu uma chama importante, diz Elias

A Comissão Camponesa da Verdade (CCV) tem lutado para que o reconhecimento também chegue aos orfãos dos crimes cometidos no campo. Para Elias Sacramento, o filme “Ainda Estou Aqui” reacendeu “uma chama importante”.

“O filme reacendeu uma chama muito importante porque, de modo geral, a maioria dos casos são invisibilizados. Órfãos dos que lutavam pela terra no período da ditadura também ficaram invisibilizados. Esse encontro é fundamental porque está mostrando isso, já é uma possibilidade muito grande de que a gente tenha um apoio”, diz  Elias Sancramento

“Os problemas relicionados à questão da terra na Amazônia, especialmente no Pará, ainda são frequentes, não se resolveram. O Estado não consegue resolver o problema”, completa.



Fonte: ICL Notícias

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