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Por Valter Mattos da Costa*
Passados cinco anos desde o início da pandemia de Covid-19, o quadro que se desenha nas escolas públicas brasileiras é desolador. O retorno às aulas presenciais não significou retomada plena da aprendizagem. Pelo contrário: revelou-se a ampliação de uma crise que já existia, mas que agora se agudiza em silêncio.
Os primeiros dias de volta mostraram salas onde o tempo pareceu congelado. Alunos do nono ano com dificuldades de leitura que remontam aos anos iniciais (alguns ainda analfabetos). Jovens do ensino médio incapazes de interpretar uma questão simples de prova. A evasão foi apenas a face visível. O abandono da aprendizagem, mais profundo, persiste.
Dados recentes do Saeb e do Ideb confirmam a queda nos níveis de alfabetização, lógica e interpretação. Não se trata apenas de retrocessos pontuais, mas de uma regressão estrutural. A defasagem atinge os que já estavam à margem: estudantes pobres, negros, moradores das periferias. Uma exclusão silenciosa, que não é medida em provas, mas sentida no cotidiano.
Frente a esse cenário, a resposta do Estado nas escolas públicas – que atendem justamente os que mais dependem da educação básica para romper o ciclo da pobreza – tem sido a aceleração.
Empurram-se conteúdos. Revivem-se apostilas padronizadas. Avaliações são aplicadas como termômetros de gestão, não de aprendizagem. Ao invés de reorganizar o tempo pedagógico, simula-se normalidade com calendários intactos, e inchados, e cobranças redobradas ao professor.
A promessa de “recuperação da aprendizagem” se converteu em pressão sobre o professorado. Sob o pretexto de que é preciso correr atrás do prejuízo, desconsideram-se as condições reais das escolas e o esgotamento dos que sustentam o ensino com o próprio corpo.
O modelo conteudista retorna, travestido de emergência. Em vez de abrir espaço para escuta, acolhimento e reconstrução coletiva do processo educativo, impõe-se a lógica do desempenho. Repetem-se metas, rankings e indicadores como se fossem solução. A precariedade é apenas remanejada.
Não há reforço escolar sem reforço humano. Onde estão os profissionais de apoio e os mediadores para os neurodivergentes com laudo? Onde está o investimento em formação continuada, em estrutura adequada, em escuta psicoemocional? Os discursos são ruidosos, mas as salas continuam quentes, superlotadas, com materiais escassos, contratos temporários – e salários que desmotivam.
A ausência de um plano nacional para recompor a aprendizagem escancara a falta de compromisso político com a educação básica. Não basta retórica. É necessário tempo, recursos, planejamento e vontade de transformar. Nada disso se faz com improviso e palavras de ordem.
É falsa a ideia de que tudo se resolve com esforço individual do estudante ou mérito pessoal do docente. As desigualdades educacionais são históricas, estruturais e exigem respostas institucionais. Tratar a crise pós-pandêmica como questão de mérito é esconder a raiz do problema.
Na visão do filósofo alemão-americano Herbert Marcuse, a “tolerância repressiva” – conceito formulado no ensaio Repressive Tolerance (1965) – descreve a aceitação de críticas que não desafiam as estruturas vigentes. Na educação, tolera-se falar do fracasso escolar, desde que não se denunciem o desfinanciamento, a sobrecarga docente ou a precarização nas escolas públicas. Tudo é permitido, exceto questionar o abandono sistemático de quem ensina.
O discurso da retomada da aprendizagem precisa ser reconstruído com base na justiça educacional. Isso significa garantir o direito à diferença, respeitar tempos diversos, criar trajetórias personalizadas. E, acima de tudo, confiar no papel pedagógico da escuta.
Responsabilizar o magistério é a fórmula mais cômoda. É mais simples jogar o foco sobre o profissional da ponta do que investir em soluções complexas. Mas sem ele nenhum projeto de aprendizagem se sustenta. Não há futuro que não passe pelas mãos de quem educa.
A escola que se deseja construir precisa romper com a lógica de desempenho como único critério. É urgente pensar um modelo que promova equidade real, que olhe para as especificidades, que não tema o debate com os profissionais de Educação e que aceite o tempo, necessário, para a reconstrução.
A aprendizagem pós-pandemia é desafio geracional. Requer coragem institucional (com recursos econômicos), compromisso social e escuta atenta dos que estão na linha de frente. Professores não podem seguir adoecendo para sustentar uma farsa de normalidade.
Famílias, por sua vez, precisam estar engajadas no processo, oferecendo respaldo ético que permita à escola cumprir sua função com dignidade.
O discurso do retorno precisa ser substituído pelo projeto da reinvenção – ou seja, em vez de tentar retomar o modelo anterior como se nada tivesse ocorrido, é necessário reconstruir práticas e políticas a partir do que se transformou. E isso começa com a escuta ativa do professor, com o reconhecimento do seu saber, com a valorização do seu trabalho. Não se aprende no vazio. Aprende-se na relação.
Se a educação é, de fato, prioridade, é hora de tratá-la como tal. Com políticas que enfrentem as consequências da pandemia, não que as maquiem. Com coragem de mudar estruturas, não apenas manuais didáticos. Com professores respeitados, não culpabilizados. Com escuta, não cobrança. Com projeto, não improviso.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora
Fonte: ICL Notícias