Quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou em 2 de abril as tarifas impostas contra os produtos de mais de 180 países e regiões, a Rússia, inimiga declarada de Washington desde a Guerra Fria, não entrou na lista.
O que aparenta ser uma proximidade entre o governo Trump e o presidente russo, Vladimir Putin, que inclusive tem levado à negociações de paz na Ucrânia com o intermédio dos Estados Unidos, na verdade não é um gesto de bondade do republicano.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, na esteira do evento Dilemas da Humanidade, realizado entre 7 e 10 de abril em São Paulo, o economista russo e fundador do grupo de estudo BRICS+ Analytics, Yaroslav Lissovolik, afirmou que “seria quase uma piada” uma tarifa de 10% ou 5% imposta por Trump sobre os produtos exportados pela Rússia.
“As restrições e as sanções que já estão em vigor em relação a Moscou são provavelmente equivalentes a milhares de por cento dessas tarifas comerciais”, declarou especialista ao afirmar que, caso as taxas fossem aplicadas, não impactariam a economia de Moscou mais do que as sanções impostas pelo governo norte-americano devido à guerra na Ucrânia.
Ao longo da entrevista, Lissovolik também falou sobre como esse protecionismo dos Estados Unidos evidencia a necessidade de uma nova ordem econômica mundial, defendendo o poder da integração regional, impulsionada pelo BRICS, para alcançar esse obejtivo.
Leia a entrevista completa com Yaroslav Lissovolik
Opera Mundi: Durante seu discurso na mesa ‘Nova Arquitetura Financeira’ , você disse que muitos dos pensamentos expressos aqui no evento Dilemas da Humanidade o inspiraram. Quais são suas impressões sobre essa conferência?
Yaroslav Lisovolik: Esta é uma das conferências mais importantes nesta conjuntura em que a economia mundial se encontra. Estamos em uma crise muito séria e reunir intelectuais para explorar as portas de entrada para superar essa crise, especialmente para o Sul Global, devido ao seu enorme potencial para mobilizar e reunir seus recursos disponíveis. Acho que isso é muito oportuno e importante. Portanto, para mim, essa conferência é de fato uma inspiração, pois vejo muita semelhança e unidade e, ao mesmo tempo, muita abertura com relação a diferentes perspectivas.
E o que vejo é que um dos principais temas é a integração regional, que é uma parte muito importante da resposta do Sul Global aos desafios atuais. E eu concordo totalmente com essa visão. Acho que é por meio da integração regional na América Latina, na África e na Ásia que o Sul Global pode aumentar seu peso, sua proeminência na arena internacional, e mobilizar recursos suficientes para dar apoio às economias que mais precisam de assistência e desenvolvimento.
Em 2023, você fundou o BRICS+ Analytics. Pode nos contar mais sobre essa iniciativa?
O BRICS+ Analytics criado em 2023 foi essencialmente um esforço para preencher uma lacuna nos estudos sobre o BRICS. Meu foco principal nas pesquisas que publico no site principal do BRICS+ Analytics é explorar as maneiras pelas quais a integração regional no hemisfério sul pode contribuir para apoiar o desenvolvimento econômico no Sul Global. E vejo o BRICS e o formato do BRICS+ como uma plataforma ideal para apoiar esses esforços.
Portanto, a maior parte da minha pesquisa é justamente sobre como os BRICS, como um grupo, podem apoiar os países em desenvolvimento a se aproximarem da integração regional e desenvolverem os mecanismos para apoiar o crescimento econômico, a conectividade e a redução da pobreza.
E eu vejo muitas respostas positivas de meus leitores. Não apenas no Sul Global, mas também nas economias ocidentais, acho que esse tipo de visão do Sul Global está finalmente consolidando seus esforços. Muitas das tendências que estamos vendo na economia global estão exatamente de acordo com esta visão, e estão evoluindo nessa direção. Estamos vendo, como eu disse [durante a exposição na mesa Nova Arquitetura Mundial] a adesão da União Africana ao G20. Estamos vendo mais discussões dentro do BRICS sobre a cooperação entre as instituições de desenvolvimento regional, mas também sobre os acordos comerciais regionais como o Mercosul, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e a União Econômica Eurasiana.
Ainda estamos no início – há muito a ser feito. E, neste momento de pressão extrema sobre o Sul Global, é hora de acelerar esses esforços e construir plataformas que já estão atrasadas.
Durante sua exposição na mesa do evento, você sugeriu que o Uruguai faça parte do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). Por quê? E há discussões sobre essa adesão?
Minha tese era que atualmente há discussões sobre a adesão do Uruguai ao Novo Banco de Desenvolvimento, e cabe ao próprio país decidir isso. Mas levando em consideração que o Brasil é membro do BRICS, e desempenha um papel tão importante regionalmente na América do Sul, a Argentina foi convidada a participar do BRICS e, em algum momento no futuro, poderá participar do grupo, o Uruguai está posicionado entre essas duas grandes economias. Assim, talvez devesse explorar as possíveis modalidades de cooperação por meio do formato BRICS+ ou do NDB, por meio de associação. Essa é uma decisão flexível. Há várias opções, incluindo a adesão ao NDB sem necessariamente integrar o BRICS. Esse formato permite interações personalizadas com diferentes economias do Sul Global.
Agora falando sobre a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Em sua análise, por que isso está acontecendo e quais são os riscos?
Esse protecionismo desenfreado que estamos vendo surgir nos Estados Unidos é uma reação a partes significativas da população [norte-]americana que não se beneficiam da globalização que ocorreu nas décadas anteriores durante um modelo que não dá importância suficiente às necessidades dos menos favorecidos. E esses eleitores desfavorecidos expressaram sua vontade e, essencialmente, o que estamos vendo agora é uma reversão da globalização, de acordo com a frustração que se acumulou em algumas partes dos Estados Unidos.
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Portanto, acho que a saída para isso é criar um novo paradigma global, uma nova modalidade de globalização que permita atender às necessidades daqueles que podem ser prejudicados por uma maior liberalização do comércio.
Quero dizer, o que estamos vendo é que um dos principais paradigmas por trás desse protecionismo desenfreado é a manutenção de empregos. Tudo gira em torno de empregos, e não se trata mais apenas dos Estados Unidos, mas cada vez mais da Europa e de outras partes da economia global. Portanto, isso leva à fragmentação.
O desafio para nós, acadêmicos e pesquisadores, é explorar novas modalidades de globalização que superem as limitações do padrão atual e visam a atingir de forma significativa e precisa aqueles que estão em desvantagem. Esse não era o caso antes. Antes ocorria o que chamei durante meu discurso de causalidade cumulativa, em que os que inicialmente tinham a vantagem continuavam a acumular essas vantagens, de modo que a lacuna com a desvantagem aumentava e nunca era superada.
A China é um dos exemplos mais importantes de desenvolvimento econômico bem-sucedido, no qual uma grande parte da população saiu da pobreza. Foi um desenvolvimento econômico propício para atender às necessidades das pessoas que mais precisam de apoio. Acho que também há no Sul Global uma enorme esperança de que o Brasil continue tendo sucesso depois de ter feito progressos no desenvolvimento de sistemas de apoio social que tiraram milhões de pessoas da pobreza. Portanto, essa é a esperança e o Sul Global será o principal contribuinte, creio eu, para essa arquitetura econômica mundial mais equilibrada, estável e sustentável.
Mas talvez valha a pena pensar, para nós, acadêmicos e estudiosos, em como discutir essas questões com o Ocidente, com os Estados Unidos, e fazer com que todos esses países também estejam de acordo com o novo paradigma de globalização que pode ser oferecido e promovido cada vez mais pelo Sul Global.
Por que Trump deixou a Rússia de fora de seu tarifaço, que atingiu mais de 180 países e regiões?
Seria quase uma piada se houvesse uma tarifa de 10% ou 5% contra a Rússia, porque as restrições e as sanções que já estão em vigor em relação a Moscou são provavelmente equivalentes a milhares de por cento dessas tarifas comerciais. Quero dizer, a escala de pressão a que a economia russa está sujeita é muito maior do que qualquer coisa que estamos vendo atualmente em termos de tarifas sendo aplicadas.
A Rússia não foi afetada pelo anúncio das mais recentes tarifas de Trump, mas todos os outros países membros do BRICS sim. O grupo deveria considerar uma resposta unificada perante a essa guerra comercial?
Com certeza. E, mais uma vez, minha posição é de que há muitas maneiras e possibilidades que ainda não foram exploradas para que o BRICS reúna essa resposta, especialmente por meio da liberalização do comércio entre países do Sul Global.
O BRICS pode facilitar isso por meio do BRICS+ e da cooperação entre os acordos comerciais regionais, como o Mercosul e a ASEAN. Portanto, você basicamente permite a liberalização do comércio no mundo em desenvolvimento para compensar esses países que estão sofrendo ao comercializar com os Estados Unidos e com outras economias avançadas.
Mas infelizmente, até o momento, ainda não há um roteiro e uma agenda confiável dentro do BRICS sobre isso, por incrível que pareça. E acredito que deveria haver, o mais rápido possível, um roteiro de como o BRICS e o BRICS+ devem se mover em direção a tarifas mais baixas para os países em desenvolvimento.
Essa alternativa que sugeriu para o BRICS é diferente da resposta da União Europeia às tarifas de Trump?
Ainda não vimos qual é a resposta da União Europeia até o momento. Parece ser uma resposta mais tática do que estratégica. Basicamente, eles estão simplesmente observando o que os Estados Unidos fazem e imitando, até certo ponto. Por exemplo, se houver uma tarifa muito mais alta, eles introduzem algum tipo de resposta na forma de tarifas mais altas. Se Trump congela algumas dessas tarifas, eles também congelam os aumentos em suas tarifas. Portanto, até o momento, ainda não sabemos o que a União Europeia fará, mas acho que também faz sentido que a União Europeia explore maneiras de cooperar com o Sul Global, como o acordo em andamento com o Mercosul, e pense em um comércio mais justo, liberal, por exemplo.
Quais são as suas considerações sobre a urgência dessas medidas contra o protecionismo de Trump?
Muitos pensadores dos nossos países do BRICS falaram sobre como as mudanças às vezes são muito lentas em alguns períodos, mas há períodos em que as mudanças ocorrem em dias, em vez de semanas ou anos, e é exatamente isso que estamos vendo. E o momento é crítico, não apenas para a economia global, mas especialmente para o Sul Global, e é muito importante que, em reação a esses desafios, o Sul Global se reúna para enfrentar os principais desafios, principalmente esse protecionismo da guerra comercial de Trump.
Mas também acho que é preciso haver não apenas uma resposta tática, mas uma resposta estratégica, um roteiro de ação não apenas para este ano ou para os próximos dois anos, mas para os próximos cinco a dez anos.
Fonte: Opera Mundi