terça-feira, abril 22, 2025

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Seduc é acusada por manipulação de dados do Ideb



Manipulação dos números se dá por meio da aprovação compulsória de alunos, tirando dos professores a autonomia na sala de aula (Reprodução/Agência Pará)

17 de abril de 2025

João Paulo Guimarães – Especial para a Cenarium

BELÉM (PA) – Professores, alunos e pais que conversaram sobre o sistema de ensino nas escolas públicas do Pará, com a reportagem da REVISTA CENARIUM, todos sob anonimato, relataram episódios de assédio moral e afirmaram que o clima é de medo dentro e fora da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc-PA). Uma fonte dentro da Secretaria afirmou que a equipe de Rossieli Soares, secretário de educação, trabalha “obsessivamente” para elevar os números do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

“A meta é aumentar o Ideb a qualquer custo, de qualquer maneira, e qualquer obstáculo que possa impedir essa meta é atropelado. Ideias que contribuam para esse objetivo, eles se apropriam. É um trabalho de manipulação de dados para inflar o Ideb”, revelou o servidor que não permitiu ser identificado. Outro profissional da educação revelou que os professores são constantemente ameaçados com Processos Administrativos (PADs) arbitrários.

O atual secretário de Educação do Estado do Pará, Rossieli Soares, foi ministro da Educação de Michel Temer, secretário de Educação de São Paulo na gestão Dória e também teve passagem pela educação no Amazonas, onde foi processado por improbidade administrativa em ação movida pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM) por omissão em fornecer documentos necessários a processo investigatório do Ministério Público. Foi condenado a pagar multa correspondente a dez vezes o valor da remuneração.

Rossieli também é acusado de manipular os números do Ideb que fizeram o Pará avançar do vigésimo sexto lugar para a sexta colocação. Conforme as denúncias, a manipulação dos números se dá através da aprovação compulsória de alunos do Estado, tirando dos professores a autonomia na sala de aula para as decisões pedagógicas. “Rossieli Soares é uma espécie de ditador. A forma como o secretário se expressa é como se apenas ele soubesse como são as coisas. Tudo está sendo feito na marra, como se fosse uma ditadura”, explica outra fonte anônima da Seduc-PA.

Rossieli Soares é acusado de manipular os números do Ideb que fizeram o Pará avançar do vigésimo sexto lugar para a sexta colocação (Reprodução/Agência Pará)

Membro do Sindicato dos Professores e doutor em Educação, o professor Abel Ribeiro indaga como o Pará conseguiu ascender a tantas posições no Ideb em apenas um ano. “Como é que tu sai de 26º lugar, lá no penúltimo lugar, e passa para 6º lugar, de um ano para outro?”

Abel explica que o Pará, historicamente, apresentava baixos índices educacionais, figurando entre os últimos colocados no País. Com essa justificativa, o secretário Rossieli Soares promoveu uma série de mudanças, criando uma equipe de gestores bonificados para pressionar os professores a seguir as diretrizes da Seduc. “Eles passaram o ano de 2023 inteiro preparando para melhorar o Ideb”, afirmou o professor Abel.

Parte dessa estratégia incluía a implementação de escolas de tempo integral, que, segundo ele, “não têm nada de tempo integral”. Nos bastidores, a pressão sobre os docentes aumentou para garantir a aprovação dos alunos e inflar os números do Ideb.

Segundo o professor, essa ordem incluía não apenas manipular as notas, mas também registrar a presença de alunos que sequer apareciam na escola. “Os professores, com medo, de nariz tapado, faziam. Questionavam, mas faziam”, relatou, destacando o clima de intimidação imposto pela Secretaria.

Professor de Matemática e Física do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) também acusa o Estado de manipular os números do Ideb. Segundo ele, o aluno só poderia ficar reprovado em até três disciplinas. A partir da reprovação na quarta disciplina, ele ficaria na condição de retido e não haveria progressão. “Todos eles foram aprovados em massa, através de alterações de notas feitas pela própria Seduc”, disse.

Professores receberam orientação para alterar notas dos alunos (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

Ele diz que os resultados das notas de cada aluno vão para o Diário de Classe, em formato digital ou físico, que é chamado de Mapa de Avaliação de Rendimento Final. Após a entrega do diário, o professor não tem mais controle sobre os valores. “O que a Secretaria de Educação fez no ano passado? Pegou as notas ou essas avaliações dos alunos e alterou, saindo da condição de reprovado, aqueles que ficaram reprovados, para a condição de aprovados”, detalha.

“No final do ano passado, vivenciamos uma das fases mais difíceis da educação no nosso Estado. Talvez seja, se não o pior, um dos piores momentos da Educação, porque a gente perdeu, de fato, a autonomia dentro das nossas escolas, infelizmente”, afirmou outro professor de Abaetetuba, distante 219 km de Belém, que pediu anonimato.

Para o docente, a imposição do chamado “aprovaço” tornou inútil qualquer tentativa de reprovação ou recuperação. “Muitos professores nem fizeram recuperação, porque já sabiam que não ia ter sentido. No dia em que íamos fazer o conselho de classe para avaliar os alunos com mais dificuldade, o resultado já estava no site da Seduc”, relatou, destacando a subtração do papel dos educadores no processo de ensino.

Menagem em grupo de WhatsApp com orientação para os professores (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

‘Grande farsa’

Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pós-doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), o professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa) Raimundo Sérgio de Farias Júnior explica que o Ideb representa “uma grande farsa no que tange ao processo de avaliação da educação básica no Brasil”. Para ele, o processo é simples, mas ajuda a maquiar os dados. “O aluno é aprovado sem aprender. Então, isso é uma política e também uma cultura que vem sendo introduzida no contexto escolar brasileiro e também paraense”.

Raimundo destaca que uma das principais metas do Ideb consiste no Brasil como signatário de um acordo internacional chamado Educação para Todos, cuja primeira conferência ocorreu em 1990, em Jomtien, na Tailândia. A partir desse acordo, estabeleceu-se que a meta para a educação seria a mesma apresentada pelos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que agrega parte dos países mais ricos do mundo, mas que também têm tradição em desvalorização da educação e dos professores.

“Então, havia uma pretensão de que o Brasil alcançaria, em 2022, a média seis. Nós não alcançamos, mas tudo isso se confronta com uma quantidade gigantesca de escolas sucateadas, salas lotadas, professores mal valorizados, remunerados e cada vez mais adoecidos também”.

Doutor em Educação pela UFPA, pós-doutor em Educação pela PUC-SP e professor da Uepa, Raimundo Sérgio de Farias Júnior (Acervo pessoal)

O professor é taxativo ao afirmar que a propaganda do governo é “enganosa, é falaciosa, é mentirosa”. Ele lembra que, em muitos casos, falta até mesmo a merenda escolar, fator importante para garantir a permanência do aluno na escola.

“O Ideb precisa melhorar o fluxo escolar. E, para isso, é necessário extinguir a possibilidade de reprovação. Já as avaliações padronizadas levam em conta apenas a proficiência em leitura, interpretação de texto e resolução de problemas matemáticos. Outras matérias não são avaliadas, como História e Geografia, por exemplo. Isso já aponta muitas limitações no sistema de avaliação padronizado em larga escala. Assim, os alunos são treinados para a prova. Eu pergunto: isso é aprendizagem? Ou dá para medir a qualidade da educação a partir da forma, do cálculo do Ideb? Eu certamente acredito que não. Então, não podemos esquecer também das desigualdades sociais e regionais no nosso País. Ignorar esse fator é apequenar qualquer análise”.

O Ideb passou a influenciar o repasse de recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), vinculando o desempenho educacional ao aumento de verbas para o Estado e municípios. O governo, em resposta, anunciou bonificações para os professores que contribuíram para a melhora no índice, o que, segundo críticos, transforma a educação em um jogo de números que não beneficia quem mais precisa: os estudantes.

Condicionalidade alarmante

A professora Vanessa Gamboa, que leciona na região ribeirinha de Abaetetuba, no Baixo Tapajós, descreve um cenário de precariedade extrema nas escolas do campo. “O projeto do Centro de Mídias da Educação Paraense (Cemep) investiu centenas de milhões de reais em televisores, monitores e computadores, mas aqui nós nem temos energia”, criticou.

Segundo a educadora, a realidade dos estudantes ribeirinhos, quilombolas e do campo contrasta com os números divulgados pelo governo estadual, que apontam um avanço expressivo no Ideb. “Esses dados são manipulados. Quando você concretamente vai até os locais, percebe que é impossível haver esse avanço de vigésimo sexto para sexto lugar nessas condições”.

Alunos de comunidades tradicionais estudam em escolas sem infraestrutura básica (João Paulo Guimarães/Revista Cenarium)

Vanessa relata que, em muitas comunidades, a ausência de infraestrutura básica inviabiliza qualquer proposta de ensino mediada por tecnologia. “Ainda que tivéssemos energia, não seria possível trabalhar com uma televisão aqui, com a escola caindo sobre nossas cabeças e alunos assistindo aula nos corredores”.

Para ela, o governo deveria investir diretamente nas condições reais de ensino em vez de impor um modelo único que ignore as particularidades das escolas do interior. “Seria muito mais interessante se esse dinheiro fosse para os projetos que a gente desenvolve, muitas vezes saindo do nosso próprio bolso”.

Outra questão levantada durante a apuração foi a falta de livros e logística para a entrega das edições disponíveis. Nas escolas atendidas pelo Sistema Modular de Ensino (Some) e pelo Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei), a chegada de livros didáticos não é garantida.

O professor indígena Patrick Lobato Arapium, que dá aula no Baixo Tapajós, explica que os materiais não chegam conforme a quantidade de alunos matriculados. “Se a gente quiser, tem que ir atrás. Não tem uma logística para que os livros cheguem até a escola”, diz ele, ressaltando que a distribuição ignora as dificuldades de acesso das comunidades rurais e obriga os próprios professores a assumirem essa tarefa. “O professor do Some tem que levar os livros por conta própria, colocar no seu transporte e levar até a escola rural”.

Disparidade educacional

Presidente do Conselho do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), a doutora em Psicologia da Educação e pedagoga Anna Helena Altenfelder destaca a importância de discutir a questão da desigualdade educacional, especialmente em Estados como o Pará.

A especialista explica que, ao analisarmos os resultados educacionais, como a média do Ideb, é crucial lembrar que essa nota representa uma média, o que significa que há alunos acima e abaixo desse indicador. “Historicamente, sabemos que os alunos que ficam para trás são os mais pobres, ribeirinhos, negros, indígenas e com deficiência. Esses estudantes não podem ser esquecidos, pois são os que mais precisam de atenção”, afirmou Altenfelder.

Outro ponto levantado por Altenfelder é a exclusão de determinadas escolas do cálculo do Ideb, particularmente as instituições em áreas rurais, multisseriadas e indígenas. “Essas escolas, presentes em grande parte da realidade do Pará, não participam do Ideb por uma determinação do governo federal. Quando celebramos os resultados, estamos excluindo os alunos que estudam nessas escolas, que, em geral, enfrentam condições bastante complicadas”, destacou.

Para a doutora, o debate em torno do Ideb deveria incluir esses estudantes e instituições vulneráveis, que, muitas vezes, ficam à margem das políticas educacionais. Altenfelder questiona: “Estamos comemorando os resultados, mas o que vamos fazer com aqueles que mais precisam? Qual é o projeto para esses alunos?”

A resposta para a pergunta da especialista está na insistência do governo do Estado em implantar nas regiões, territórios e terras indígenas o ensino à distância de forma forçada e sem a consulta prévia estabelecida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT 169).

Investimento em tecnologia

Um ofício da Seduc-PA, assinado pelo secretário Rossieli Soares, confirma a decisão de implantação do Centro de Mídias da Educação Paraense (Cemep) em comunidades indígenas, com foco na aldeia Itapeyga, na Terra Indígena Parakanã, já para o ano letivo de 2025. O documento explicita que a decisão foi baseada em pareceres técnicos internos e que a solicitação foi analisada dentro dos trâmites administrativos da Secretaria. Leia o documento abaixo:

O MPF, que se apoia em marcos legais e princípios de autodeterminação dos povos indígenas, por meio da Recomendação n.º 11/2024, questiona a legalidade dessa implementação sem consulta prévia às comunidades indígenas, destacando que o modelo de ensino mediado por tecnologia pode violar direitos garantidos pela Convenção 169 da OIT e outras normativas nacionais sobre educação indígena.

O documento enfatiza que a educação escolar indígena deve respeitar a diversidade cultural e linguística dessas comunidades, e solicita a suspensão imediata do Cemep até que haja uma consulta prévia e um modelo pedagógico adequado seja construído de forma participativa. Leia o documento abaixo:

Sem resposta

A REVISTA CENARIUM questionou o Governo do Pará, a Secretaria de Estado de Educação, o gabinete da Corregedoria, e a Secretaria de Comunicação, via assessoria de imprensa, sobre as acusações expostas na reportagem, mas até a publicação desta matéria não houve retorno.

O Ministério da Educação respondeu que não é da alçada do MEC se envolver em denúncias de gestões do Estado, já que cada secretaria e gestão estadual têm sua autonomia.

O assunto foi tema de capa e especial jornalístico da nova edição da REVISTA CENARIUM. Acesse aqui para ler o conteúdo completo.

Capa da Revista Cenarium (Reprodução)
Leia também: ESPECIAL – Denúncias revelam colapso na educação de comunidades tradicionais do Pará
Editado por Eduardo Figueiredo
Revisado por Jesua Maia



Fonte: Revista Cenarium

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