Se tem dado de barato que a guerra tarifária desencadeada por Trump é um feito inédito e muito focalizado. Isso não é correto. Nem é inédita, nem é um tema somente tarifário. Circunstâncias como a Grande Depressão de 1929 e a própria Segunda Guerra Mundial foram cenários de processos econômicos e políticos que incluíram as tarifas que hoje põem o mundo “de cabeça para baixo” – com a exceção da China.
Se buscarmos referências mais próximas, veremos que a experiência do Acordo de Plaza (1985), pensada e executada pelo G-5, liderado pelos EUA, para resolver problemas muito similares aos de agora, com claras dimensões globais, pode ser comparado ao “Acordo de Mar-a-Lago”, que resume a estratégia de Trump (S. Miran, 2025) e, como naquela ocasião, inclui a “loucura das tarifas”.
Dizer que Trump é louco porque sua política tarifária “conduzirá os EUA e ao mundo a uma recessão” é crer de pé juntos na propaganda anti-Trump realizada desde os prédios democratas que, como os europeus, creem que chegou a hora de se libertarem da vassalagem em que estiveram durante décadas.
Se alegrar pela “pausa” de 90 dias como se fosse uma “vitória” dos inimigos de Trump é não entender que o processo em curso apenas está começando e tem características tectônicos cujo amadurecimento e reconfiguração são lentos e requerem um prazo que facilmente pode superar uma ou duas décadas. A pausa não responde, como creem os anti-Trump, a medidas específicas, mas a uma estratégia cuidadosamente desenhada e que se chama “Acordo de Mar-a-Logo”, em homenagem ao complexo hoteleiro de propriedade de Trump na Flórida.
Em consequência, as tarifas, com marchas e contramarchas, são o primeiro passo de tal estratégia, destinada a recuperar o “América Primeiro” no marco de uma nova ordem mundial. Não é acasos suas altissonantes pretensões de tomar o Canal do Panamá ou a Groenlândia. A “pausa” (que não é retirada) de 90 dias é para que se passe à segunda fase: a negociação sobre as tarifas que, astutamente, Trump e sua equipe passaram a considerar como “recíprocas”. Como efeito, já se enfileiram mais de 70 países que buscam um “rebaixamento” das tarifas. Há que se compreender que os EUA não só buscam objetivos comerciais, mas sim, fundamentalmente, financeiros e monetários, que permitam fazer a gestão de sua monumental dúvida externa e na sobrevalorização do dólar de forma vantajosa.
O “Acordo de Plaza”
Ele foi assinado em setembro de 1985 pelos membros do G-5 (França, Alemanha, EUA, Reino Unido e Japão) embora, está claro, foi promovido pelos EUA. Seus objetivos eram: depreciar o dólar estadunidense e reduzir o crescente déficit comercial dos EUA. Entre 1980 e 1985, o dólar havia se valorizado quase em 48%, pressionando pela indústria manufatureira dos EUA, já que os produtos importados eram mais baratos que os produzidos localmente.
Dois anos depois da assinatura do “Acordo de Plaza”, o dólar havia se desvalorizado em quase 26% e, como consequência, o yen e o marco alemão aumentaram seu valor. No campo da redução do déficit comercial, apenas o déficit comercial com a Alemanha foi reduzido, e com o Japão foi reduzido um pouco. É dizer, a questão comercial derivada das tarifas não era o objetivo principal, mas sim desvalorizar o dólar para melhorar a gestão da dívida externa.
Em 1987, vendo que os objetivos do “Acordo de Plaza” foram alcançados satisfatoriamente, o G-5 decidiu, sempre sob a sombra dos EUA, deter seus efeitos por meio do “Acordo de Louvre”, evitando que o dólar seguisse perdendo valor.
“Acordo de Mar-a-Lago”, ou o Bretton Woods de Trump
“A ideia (com o acordo) é que os EUA forneçam segurança ao mundo e, em troca, os países ajudem a pressionar o dólar para baixo para fazer crescer o setor manufatureiro dos EUA…o governo tem dois instrumentos para atingir esse objetivo: um, tarifas que aumentarão as receitas fiscais dos EUA; e, dois, o fundo soberano de riquezas”.
O fundo soberano será formado por moedas estrangeiras como o euro, o yen e o yuan, que permitirá depreciar o dólar e renegociar a dívida estadunidense. Essa proposta será bem-sucedida se os EUA “coagirem os países aliados com taxas comerciais ou com a expulsão do guarda-chuva de segurança dos EUA”. (Zoltan Poszar, 2023).
Em setembro de 2024, Steven Miran, um analista de investimentos dos EUA, pegou esse pensamento e o transformou em uma “estratégia abrangente” que chegou às mãos de Trump em dezembro de 2024. Como resultado, Miran se tornou o presidente do Conselho de Consultores Econômicos de Trump.
De acordo com Miran, “a força do dólar, que se tornou a moeda de referência dos bancos centrais em todo o mundo, está por trás das décadas de destruição de empregos e desinvestimento no setor manufatureiro dos EUA”, portanto, é necessário derrubar o dólar e aumentar as exportações dos EUA, trazendo os empregos no setor manufatureiro de volta aos EUA.
Esse setor, como mostram as estatísticas, perdeu força desde a década de 1970 com os processos de offshoring e globalização. Com o dólar supervalorizado, essa tendência se consolidou e parecia irreversível. Essa situação tornou os EUA dependentes das importações e os resignou à irrupção de produtos importados, especialmente da China, que manteve sua moeda artificialmente desvalorizada para fortalecer seu setor de manufatura, olhando para o mercado global.
Além disso, os EUA têm de arcar com o custo excessivo do apoio militar a seus aliados em todo o mundo, cujo aumento anual é paralelo ao crescimento da dívida pública dos EUA.
Diante desse cenário, a política tarifária de Trump é o primeiro elo da estratégia que resume o “Acordo de Mar-a-Lago”. A partir desse pedestal, Washington pode se oferecer para reduzi-las, como está fazendo com a “pausa”, enquanto ainda ameaça retirar a proteção militar. Dessa forma, Trump teria uma posição de negociação forte o suficiente para exigir que quase todos os seus parceiros comerciais, com exceções como a China, “desdolarizem” suas reservas e troquem seus títulos do Tesouro por títulos de 100 anos, ou sem vencimento, não negociáveis, que aliviariam os custos de financiamento dos EUA, especialmente o refinanciamento de sua dívida.
Aqueles que não aceitarem essas exigências estarão expostos às ameaças militares e às altas tarifas anunciadas em 2 e 9 de abril, além de outras exigidas pelo critério de “reciprocidade”. No caso da China, a guerra comercial é declarada abertamente. Os EUA podem impor tarifas de até 125%, mas tudo indica que a China responderá proporcionalmente e não fará parte da linha que está pedindo “descontos”.
A partir desse ponto, as tarifas que permanecerem em vigor, mesmo após as “negociações” pós-tarifárias, contribuirão para dois processos que são do interesse dos EUA: um, desestimular/reduzir as importações de determinados países; e, dois, aumentar os investimentos em solo americano, reavivando o enfraquecido setor industrial. Muitos porta-vozes de Wall Street e do mercado acionário mundial que estavam céticos em relação às medidas de Trump agora veem que podem estar diante de um manual para uma nova ordem mundial.
A China, por sua vez, está exigindo respeito de Trump. Ela não cederá às pressões tarifárias e, pelo contrário, responderá de forma proporcional e justa até que os EUA estejam em posição de iniciar um diálogo respeitoso e atencioso com um país que está facilmente desafiando-o pela hegemonia mundial. Nessa lógica, a China acaba de aplicar tarifas “recíprocas” aos produtos norte-americanos que desejam entrar no mercado chinês.
Fontes:
“La Doctrina Miran: El Plan de Trump para disrumpir la globalización”. Stephen Miran, 2025.
“La posición de China sobre algunas cuestiones relativas a las relaciones económicas y comerciales entre China y Estados Unidos”, abril, 2025. Oficina de Información del Consejo de Estado de la República Popular China.
Fonte: Opera Mundi