A ativista e política socialista Claudia de la Cruz, que concorreu às eleições dos Estados Unidos pelo Partido Socialismo e Libertação em 2024 e recebeu 166 mil votos, avaliou que as recentes políticas adotadas pelo republicano Donald Trump expõem o projeto imperialista do país, antes não vistas de forma “tão clara”. O que, para ela, contribui para fomentar uma reação do mundo contra o plano hegemônico norte-americano.
“A crise está retornando ao império, aos Estados Unidos. Agudizando contradições que, talvez, para as pessoas de quase uma década atrás, não viam tão claramente. Agora está explícito. Isso, de certa forma, aumenta as oportunidades de fortalecer os movimentos sociais e políticos”, afirmou de la Cruz.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, a ex-candidata considerou os principais adversários políticos que lideraram a campanha eleitoral no ano passado se consolidam como “dois lados da mesma moeda”, uma vez que tanto Trump quanto o democrata Joe Biden defendem, no fim, os mesmos planos políticos.
“Embora os democratas governem de forma conservadora, capitalista e terrorista, eles o fazem de uma forma mais dócil, mais disfarçada. Já o Trump revela todas as monstruosidades do capitalismo e do imperialismo. Essa é a diferença. A diferença está no método, não no projeto”, avaliou.
De acordo com de la Cruz, a reeleição de Trump foi possível pelas “deficiências do projeto capitalista e imperialista” do Partido Democrata, o que resultou na perda da confiança da população civil à sigla governista, embora detenha a maior parte do poder político no país.
“Não resolveu os problemas imediatos de uma população cada vez mais vulnerável, mais marginalizada e mais cooptada por corporações e bancos”, explicou, ao criticar que as discussões no espectro político se baseiam em perspectivas burguesas e não atendem às necessidades cotidianas do cidadão. “A democracia agora é da classe dominante para a classe dominante, e de promover os interesses da classe dominante. As pessoas estão percebendo isso”.
E se não fosse republicanos x democratas?
De la Cruz relatou saber que era improvável ganhar no pleito, mas que não havia concorrido com o objetivo de obter o assento na Casa Branca, uma vez que os EUA compartilham de um processo eleitoral “criado para promover a agenda capitalista”, que se configura automaticamente entre os republicanos, ou os democratas.
Segundo a ex-candidata, a pretensão era contribuir, de alguma forma, para “desmantelar a narrativa, a agenda dos EUA entre a população norte-americana”.
“Tratava-se de construir ou fortalecer movimentos sociais. E todos esses objetivos foram alcançados. Foi uma campanha que conseguiu atingir os objetivos que estabelecemos para nós mesmos. E fizemos isso dentro de um contexto em que um genocídio também estava ocorrendo. As pessoas viram bilhões de dólares sendo investidos para uma guerra. O dinheiro sendo removido das comunidades, enquanto podíamos criar moradias, investir em educação e infraestrutura”, afirmou.
As principais propostas apresentadas pelo Partido Socialismo e Libertação envolviam a criação de uma economia colaborativa; redução de 90% dos investimentos em militarismo; aumento de investimentos na infraestrutura, na educação e em programas públicos e sociais; criação de um sistema de saúde gratuito; direito à formação sindical de trabalhadores; assistência às comunidades indígenas e negras; entre outros.
“Não é falta de dinheiro, e sim um repasse diabólico em tudo o que mata a vida do planeta e dos seres humanos. E nós [EUA] temos a capacidade, o dinheiro, a inteligência, a criatividade para poder investir [nas políticas apresentadas]”, pontuou.
Claudia de la Cruz concorreu à Presidência dos Estados Unidos em 2024
Trump, Lula e o Sul Global
Nas últimas semanas, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tem confrontado a postura adotada por Trump em seus primeiros meses de mandato, chegando a afirmar que o republicano não pode dar “cavalo de pau” no mundo e que ele não foi eleito para “mandar no mundo”.
Questionada sobre a atual relação entre os dois países, de la Cruz afirmou que o comportamento de Washington com Brasília é o mesmo para o resto do mundo, ou seja, de “querer dominar, controlar, reprimir”.
Nesse sentido, ressaltou a importância dos blocos, como o próprio BRICS, que se consolidam como “respostas de sobrevivência” à hegemonia norte-americana.
“É sobre como resistimos à hegemonia dos EUA para podermos garantir a sobrevivência dos nossos povos. E é justamente isso que é necessário. Tem a ver com o valor, com o direito que o resto do mundo tem de viver com dignidade, algo que os EUA impediram por muitos anos”, ressaltou, associando ideias como “desdolarização” e “multipolaridade” a uma “resposta à representação que os EUA vêm desenvolvendo em todo o mundo há muitas décadas”.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundo: a disputa eleitoral pela Casa Branca em 2024 foi acirrada especialmente para os partidos de Joe Biden (Democrata) e de Donald Trump (Republicano). Qual cenário você esperava caso Biden fosse reeleito, e como você avalia a gestão Trump?
Claudia de la Cruz: Biden e Trump são dois lados da mesma moeda. Em última análise, o ponto central de ambos é o projeto político e econômico do capitalismo e do imperialismo.
Há diferenças entre como Trump e os democratas lideram e governam. Embora os democratas governem de forma conservadora, capitalista e terrorista, eles o fazem de uma forma mais dócil, mais disfarçada. Já o Trump revela todas as monstruosidades do capitalismo e do imperialismo.
Essa é a diferença. A diferença está no método, não no projeto. E essa avaliação é a que temos feito desde a gestão Obama. Em todos esses governos democratas, de uma forma ou de outra, seus fracassos, suas deficiências são o que pavimentam o caminho e criam o espaço para Trump vencer.
Em outras palavras, Trump emerge das deficiências do projeto capitalista e imperialista dos democratas.
As pessoas nos EUA perderam grande parte da confiança na forma como o Partido Democrata governa, que detém a maioria do poder político nas últimas décadas e não resolveu os problemas imediatos de uma população cada vez mais vulnerável, mais marginalizada e mais cooptada por corporações e bancos.
No cenário político durante a campanha de 2024, vimos claramente não apenas quem são os progressistas, os socialistas, mas toda uma população que decidiu não sair e votar nos democratas. Trump não venceu porque tinha a maioria da população. Ele venceu com 72 milhões de votos em um país que tem 330 milhões de pessoas. A maioria das pessoas não saiu para votar nem em um democrata nem em um republicano.
Isso deixa muito a ser dito em termos do desafio que enfrentamos da esquerda. Desde aqueles que se comprometeram com o socialismo, até aqueles que organizaram o descontentamento da população ou que conseguiram se organizar com base em um projeto e um plano econômico e político, que se comprometem com o avanço da vida da maioria da população trabalhadora norte-americana.
Ontem eu estava dizendo que muitas vezes dizem que nossa classe trabalhadora e a população pobre são apáticas em relação a discussões políticas e econômicas. Isso é falso. Elas são apáticas em discutir as narrativas políticas da burguesia, dos capitalistas e dos imperialistas, porque estes não resolvem seus cotidianos.
Na economia, as conversas são baseadas no mercado, não nas necessidades das pessoas. Então, o que aprendemos através da trajetória dessa intervenção explicitamente socialista? Não necessariamente com o objetivo de ganhar a Presidência, porque isso é quase impossível nos EUA dentro de um processo muito antidemocrático e criado para promover a agenda capitalista. Nossa aposta era na educação em massa. Tratava-se de ser capaz de contribuir, a qualquer momento, para desmantelar a narrativa, a agenda dos EUA entre a população norte-americana.
Tratava-se de construir ou fortalecer movimentos sociais, e todos esses objetivos foram alcançados. Em outras palavras, foi de alguma forma diferente, uma campanha que conseguiu atingir os objetivos que estabelecemos para nós mesmos. E fizemos isso dentro de um contexto em que um genocídio também estava ocorrendo.
Vale lembrar que a maioria da população latino-americana é contra esse genocídio. As pessoas viram que bilhões de dólares estavam sendo investidos para uma guerra. O dinheiro sendo removido das comunidades, enquanto estamos perdendo a possibilidade de criar moradias, a possibilidade de investir em educação e infraestrutura.
A crise desenvolvida em parte devido ao imperialismo, que tem atuado contra o Sul Global, agora está retornando ao império, aos EUA. Agudizando contradições que, talvez, para as pessoas de quase uma década atrás, não viam tão claramente. Agora está explícito.
E isso, de uma forma ou de outra, aumenta as oportunidades de fortalecer os movimentos sociais e políticos para ter a coragem de dizer: “Chega de capitalismo. Queremos criar um novo projeto econômico, um novo projeto político, e podemos chamar esse projeto de socialismo”. Há uma oportunidade incrível. Seria uma grande contribuição para o resto do mundo acontecesse nos EUA. Para nós, o processo eleitoral de 2024 foi justamente sobre intervir a partir dessa posição.
Sabemos que há um movimento socialista muito respeitado nos EUA. Como você disse, a comunidade internacional e a própria população norte-americana repudia as ações tomadas por Trump hoje, mais do que nunca. Dito isso, a vitória de um partido socialista seria uma possibilidade nos EUA caso o país não dependesse dos estados-pêndulo e da particularidade de seu sistema eleitoral?
Os estados-pêndulo, de uma forma ou outra, são onde a maioria da população necessariamente não existe. A maioria da população vive fora disso. No entanto, estes são decisivos justamente porque são pêndulos, ou seja, porque o capitalismo não tem a oportunidade, não tem a maneira de responder às necessidades das pessoas.
Para mim, essa é a coisa mais engraçada sobre a democracia norte-americana. A maioria da população dos EUA não está convencida.
Mas acho importante dizer que o método de governança dos democratas tem sido tal que fez as pessoas acreditarem que o Partido Democrata representa a classe trabalhadora. Entretanto, todos os acontecimentos até agora determinaram que este realmente não é o partido da oposição. Novamente, como disse antes, é a mesma moeda com duas faces.
É o colégio eleitoral que elege o presidente dos EUA. Não são as pessoas. Se fosse o povo, seria um voto para cada pessoa, e esse voto para cada pessoa seria o que contaria para eleger um presidente. Não temos uma democracia popular nos EUA.
A democracia agora é da classe dominante para a classe dominante, e de promover os interesses da classe dominante. As pessoas estão percebendo isso. E os estados-pêndulo são, de certa forma, narrativas criadas para validar derrotas ou vitórias. No entanto, eles [classe dominante] sempre ganham.
Gostaria de ouvir as principais propostas que seu partido, o Partido Socialismo e Libertação, apresentou durante a campanha eleitoral de 2024.
Continuamos a afirmar que podemos criar uma economia baseada na colaboração, na solidariedade, que se concentre nas necessidades das pessoas mais necessitadas, das historicamente mais marginalizadas.
Defendemos que é possível reduzir em 90% o investimento no militarismo para poder investir na infraestrutura, na educação, em programas públicos e sociais.
Não é falta de capital, não é falta de dinheiro que existe, mas sim um investimento diabólico em tudo o que mata a vida do planeta, dos seres humanos. E nós [EUA] temos a capacidade e o capital, a inteligência, a criatividade para poder investir nisso e não no militarismo que vem do Pentágono e da Casa Branca. [Durante a conferência Dilemas da Humanidade] Estávamos falando sobre erradicar a guerra contra as comunidades negras.
A guerra contra as comunidades negras é justamente sobre tirar verbas que continuam sendo investidas e aumentadas em todo o país para destinar à polícia e aos departamentos que servem de repressão e ataque a comunidades negras, com base no racismo que ainda existe nos EUA.
Conversamos sobre investir especificamente na educação, infraestrutura e programas recreativos para comunidades negras e indígenas. Falamos sobre a necessidade de criar um sistema de saúde gratuito, porque existe possibilidade para isso. Conversamos sobre a necessidade de reparar os danos causados às comunidades indígenas e negras.
Abordamos o direito à formação sindical para todos os trabalhadores. Trabalhadores aos quais foi negada a oportunidade de se sindicalizar, como os da Amazon, da Starbucks, de menor renda e mais explorados.
Conversamos sobre a possibilidade de criar mais empregos, desenvolver indústrias e fechar mais de 800 bases militares. Em outras palavras, foi e continua sendo uma aposta por um programa baseado na reestruturação de toda uma sociedade. E não é utópico, é muito possível.
Novamente, porque a economia existe, porque os avanços tecnológicos existem, porque há maneiras de planejar e organizar uma sociedade com base nas necessidades das pessoas. Queremos desenvolver para o bem-estar das pessoas. Os EUA são o país mais rico do mundo e tem um potencial incrível de desenvolvimento. No entanto, o desenvolvimento que o capitalismo sempre propõe é para o benefício econômico dos capitalistas. Então, é preciso construir uma sociedade, reconstruir em grande parte a maneira como pensamos sobre o mundo para que possamos criar a sociedade que precisamos.
Por isso que nossa abordagem não foi de reforma. Porque quando os capitalistas e os detentores do poder querem reverter essas reformas, eles conseguem.
Vamos falar um pouco sobre a relação entre EUA e Brasil. Não é novidade a troca de farpas entre Trump e Lula, que preside o BRICS neste ano. Além disso, o bloco econômico tem estudado a desdolarização, ou seja, a criação de uma moeda local para que os países-membros possam realizar suas transações financeiras, certo? Como você interpreta a relação que se desenha entre Washington, Brasília e o Sul Global?
Acho que a relação que ele tem com o Brasil é uma relação que ele tem com o mundo, há muitas décadas. É a relação de querer dominar, controlar, reprimir. De querer mesmo. Quer dizer, é isso que as relações exteriores têm sido para os EUA, porque infelizmente o desejo é ser o único.
O que os países do Sul Global têm feito é criar e avançar em respostas de sobrevivência. É isso que é necessário. É sobre como resistimos à hegemonia dos EUA para podermos garantir a sobrevivência dos nossos povos. E é justamente isso que é necessário. Isso tem a ver com o valor, com o direito que o resto do mundo tem de viver com dignidade, algo que os EUA impediram por muitos anos.
Então, quando falam sobre a desdolarização, sobre a multipolaridade, trata-se de uma resposta à representação que os EUA vêm desenvolvendo em todo o mundo há muitas décadas.
Os EUA não estão fazendo ataques e ameaças apenas ao Brasil, como também fazem no México, no Japão, no Canadá, etc.
Isso porque é um imperialismo em declínio. O país está sendo reduzido a nada, justamente porque, de certa forma, tentou isolar todos os povos. E acontece que todos os povos estão passando a perceber que sobreviver significa criar blocos e mais blocos contra os imperialistas. Isso é um grande avanço para a humanidade.
Deixemos que continuem tendo diferenças porque seus valores são diferentes. O cenário é diferente. Eu teria medo se Lula fosse a favor de Trump. Eu mesma teria medo de mim se a Claudia fosse a favor de Trump. Eu teria medo se a revolução cubana dissesse: “Bem, Trump é o melhor”. Ou seja, eu teria medo de qualquer país que se alinhasse com as políticas do imperialismo que agora está à frente da União. Porque é uma ameaça à humanidade e ao planeta. Que bom que os países agora estão se dando conta.
Fonte: Opera Mundi