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Por Douglas Vieira
Já na saída da estação, assim que as portas do trem se abriram em Rimini – uma pequena cidade litorânea de cerca de 160 mil habitantes localizada na região italiana da Emilia-Romana –, a primeira coisa que se via era um cartaz da prefeitura sobre uma série de encontros para discutir questões de gênero e a violência contra a mulher. Ao centro do pôster, em destaque, estava Marielle Franco. Se não era exatamente surpreendente pelo tema, surpreendia o fato de isso acontecer na saída da Stazione Centrale de Rimini, na costa do Mar Adriático.
Era novembro, mês do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, instituído pela ONU, e o congresso “Donne coraggio!” (Coragem, mulheres!) ocuparia diversos espaços da cidade entre os dias 20 daquele mês e 16 de dezembro de 2024. A programação era assinada pela organização Rompi il Silenzio, responsável por acolher denúncias de mulheres vítimas de violência de gênero e por coordenar uma rede de assistência na luta por direitos e contra a violência de gênero, que inclui o Centro Antiviolenza Marielle Franco.
Localizado em Santarcangelo di Romagna – província de Rimini –, o espaço recebeu este nome para celebrar o legado da vereadora e militante de direitos humanos brasileira, o que demonstra na prática a admiração que as mulheres dessa região têm por ela, que é um símbolo constante nas lutas feministas da Emilia-Romana.
Ao ser informada do fato pela reportagem do ICL Notícias, a Ministra de Igualdade Racial Anielle Franco conta que saber dessa homenagem à sua irmã em Rimini chega como um acalanto para ela e para a família.
“Toda vez que falo de legado, de memória da Mari, não importa muito o país, a gente se sente acalentado. Porque, quando a gente perdeu a Mari, não tinha a dimensão desse legado, do que viria para a família após aquele assassinato tão cruel. Mas é triste que a gente ainda precise falar sobre violência de gênero e raça em vários espaços – e é triste que a gente tenha tantos símbolos de luta. E a Mari é um deles”, explica Anielle.

Valeria Guagneli e Serena Marroncini
O Centro Antiviolenza Marielle Franco
A ideia de incorporar à rede uma sede voltada ao combate à violência com o nome de Marielle surgiu em 2019 e, segundo Paola Gualano, militante dos direitos da mulher, à época ainda coordenadora do Rompi il Silenzio, o nome veio naturalmente: “A gente já acompanhava a história do trabalho de Marielle Franco por direitos humanos quando soubemos do assassinato. E a ideia de renomear a organização como Centro Antiviolenza Marielle Franco surgiu naturalmente, tinha de ser assim. Não fazia sentido não ser.”
Lá, além de mulheres de diferentes províncias da região poderem fazer denúncias em um lugar seguro e com assistência jurídica, elas também recebem assistência emocional e acesso a uma rede que permite o enfrentamento não apenas do medo, mas também das dificuldades, inclusive econômicas, decorrentes desse tipo de denúncia. E o ambiente é ainda mais complexo hoje pelo intenso fluxo migratório da Europa, que incorpora um grande número de mulheres imigrantes, de culturas, religiões e realidades sociais distintas das mulheres italianas.
Por isso, Valeria Guagneli, especialista em intercultura do Centro Antiviolenza Marielle Franco, afirma que alcançar todas as nuances e interseccionalidades é um dos focos principais hoje do trabalho que conduz no Centro Antiviolenza Marielle Franco, pela necessidade de acolher todas as mulheres, independentemente de origem. É este um dos motivos pelos quais ela explica o olhar com tanto afeto para a importância de Marielle.
“Nosso centro se chama Centro Antiviolenza Marielle Franco porque ela era uma mulher negra, feminista, lésbica, mãe e ativista. Ela representa a interseccionalidade das lutas femininas, pois defendia os direitos de diversas mulheres. A violência de gênero é transversal e afeta mulheres de todas as classes sociais, idades e origens”, explica Valeria.
Anielle acolhe a visão da especialista em intercultura sobre a universalidade de Marielle, e lembra que essa era uma análise que ela próprio fazia frequentemente: “A Mari realmente representa isso. Eu falava sempre isso em 2018, que ela trazia no corpo dela a representação e a representatividade de muitas lutas, por ter sido mãe, mãe-solo, bissexual, parlamentar, negra de favela, professora, cotista, estudante… Enfim, eram muitas lutas que ela travava no seu corpo e acho que é daí que vem esse símbolo”, reflete a Ministra.
O sorriso de Marielle
Para além de batizar uma de suas sedes e estampar cartazes, o Rompi il Silenzio, representado por suas operadoras e voluntárias, tem como grande interesse conhecer melhor o legado e as histórias de vida de Marielle, sendo frequentemente discutida sua atuação em encontros realizados pela organização.
Há também um desejo de estarem conectadas com mais frequência a mulheres que conheceram a ex-vereadora. Assim, quando decidiram pelo nome em 2020, procuraram Monica Benício, viúva de Marielle, para um bate-papo. Elas contam que o encontro não ocorreu por conta da pandemia, que teve forte impacto no Brasil e na Itália, mas que Monica teria enviado a elas textos de Marielle, os quais foram lidos e estudados. Esse movimento com Monica não foi isolado e segue dentro dos planos do Rompi il Silenzio, que, no último dia 21 de março, realizou uma live intitulada “Marielle Vive!”.
Na época, do contato feito por mim como jornalista, veio o pedido por convidar uma mulher brasileira conectada à história de Marielle para o encontro. Áurea Carolina, ex-deputada federal e hoje diretora da organização NOSSAS!, foi a convidada, ao lado de Valeria Guagneli e Vera Bessone, jornalista do Corriere di Romagna e coordenadora da organização La Casa delle Donne.
Na conversa, o foco foi na revolução de afeto que marca o modo Marielle de fazer política, que ela diz ser fundamental para a luta de mulheres do mundo todo. “O sorriso de Marielle é, de fato, um símbolo da sua política. A forma afetuosa e festiva com que ela fazia política sendo uma mulher da favela, uma mulher da cultura, que gostava de música, de dança, de celebrar com suas amigas e com sua família”, disse Áurea, lembrando que o sorriso dela a impressionou no dia em que se conheceram.
Essa característica do fazer político de Marielle é tratado frequentemente como um dos grandes legados da vereadora brasileira. Valeria vê essa característica como fundamental para sua atuação na intercultura e o desafiador trabalho com imigrantes. A advogada destaca que a interseccionalidade e o afeto de Marielle são características que fizeram de Marielle um ícone global.
“A intercultura envolve uma visão mais ampla. As mulheres imigrantes têm experiências diferentes das mulheres italianas. Ambas vivenciam a violência, mas as estrangeiras enfrentam desafios adicionais, como barreiras linguísticas e a necessidade de permanecer legalmente no país”, explica Valeria. “Uma estrangeira pode ter seu visto de residência vinculado ao marido. A intercultura, então, envolve combinar o direito da imigração com a perspectiva de gênero.”
Esses serviços, disponíveis a quem chega a qualquer sede da rede do Rompi il Silenzio, também estão no livreto Uniti contro la violenza – Guida ai servizi per le donne nella provincia di Rimini (Unidas contra a violência – Guia dos serviços para mulheres na província de Rimini, em tradução livre), um guia distribuído pela entidade com informações sobre a rede, em 10 idiomas: italiano, inglês, português, francês, espanhol, albanês, romeno, mandarim, árabe e russo, e reúne contatos e endereços de 79 escritórios, organizados por diferentes grupos de serviços: associação, saúde (incluindo saúde mental), assistência social e números úteis e de emergência.
A escolha dos idiomas reflete a diversidade de nacionalidades mais comumente encontradas na Emilia-Romagna. “Falar de universalidade, de interseccionalidade, é falar da realidade desse país aqui, do Brasil. Nós somos diversas! Claro que cada uma com as suas peculiaridades, mas a gente também, ao mesmo tempo, enfrenta muitas lutas parecidas”, explica Anielle.
A especialista em intercultura do Centro Antiviolenza Marielle Franco destaca que a revolução pelo afeto e pela interseccionalidade é um ato de resistência poderoso, em especial para uma mulher latino-americana, como ela, que é uma argentina radicada na Itália há 35 anos. “Marielle ser reconhecida neste lugar é uma conquista simbólica, pois ela foi uma combatente interseccional. Ela simboliza uma luta revolucionária cheia de alegria. Sempre lembro dela sorrindo, com os dentes à mostra. O patriarcado quer corpos silenciados, tristes, isolados e sem alegria. O sorriso de Marielle era um ato de resistência. Na América Latina, poucas coisas são tão revolucionárias quanto uma risada.”
Um centro construído pelas mulheres de Rimini
A criação da rede Rompi il Silenzio é uma conquista das lutas do movimento feminista da Emilia-Romana e surgiu há 20 anos como uma organização independente, encabeçada por um grupo de amigas. Na época, a iniciativa tinha como estrutura apenas alguns números de telefones celulares.
Paola Gualano, militante dos direitos da mulher, fundadora e ex-presidente da organização, lembra desse momento. “Inicialmente, eram seis números de telefone celular para que as denúncias fossem feitas. Era uma central telefônica que buscava auxiliar as mulheres na busca por assistência do Estado e da Justiça para diferentes formas de violência, física e emocional”, lembra.
“Rimini não tinha um centro antiviolência e a prefeitura quis que assinássemos um convênio com eles. Não gostávamos muito da ideia porque queríamos permanecer autônomas, mas era também uma questão econômica. Com isso, dividimos a atuação por províncias e, com o tempo, as coisas obviamente cresceram pouco a pouco e surgiram mais sedes. Era mais lógico que o centro se deslocasse até elas, em vez do contrário”, explica Paola, ao mesmo tempo que justifica a parceria da organização com os serviços públicos.
Isso de fato aconteceu e a atuação que era na base do empenho e doação daquele pequeno grupo de amigas cresceu e ganhou uma gama muito maior de serviços. “Os centros nasceram dos movimentos feministas e são compostos apenas por mulheres. Somos especialistas em violência de gênero. Valeria [Guagneli], operadora do Centro Antiviolenza Marielle Franco, por exemplo, é uma advogada e atua como especialista em intercultura. Trabalhamos junto com psicólogas e advogadas especializadas na temática da violência de gênero’’, explica Serena Marroncini, coordenadora da organização Rompi il Silenzio.
Assim, no lugar de apenas alguns números telefônicos, a rede hoje opera uma rede abrangente de serviços, que conta, por exemplo, com sete “casas-refúgio”, situadas em endereços secretos com o objetivo de oferecer proteção às mulheres em risco após denunciarem seus agressores. “Elas são acolhidas nesses locais junto com seus filhos, garantindo sua segurança. Nem mesmo a polícia ou os serviços sociais sabem onde ficam as casas. Apenas algumas de nós temos acesso a essa informação para manter o sigilo e a segurança das mulheres acolhidas”, conta Serena.
Na Itália, em 2024, cerca de 100 mulheres morreram vítimas de feminicídio, de acordo com dados divulgados pela organização, contra 1.450 feminicídios registrados em 2024 no Brasil, segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam) 2025, divulgado pelo Ministério das Mulheres. “Apenas na área de Rimini e Santarcangelo, mais de 350 mulheres recorreram ao nosso Centro Antiviolenza Marielle Franco em 2024. Essas mulheres são todas vítimas de violência, que pode ser econômica, psicológica, física…”, conta Serena. “Os nossos abrigos têm 32 camas no total e, só em 2024, recolhemos 41 mulheres e 38 menores em proteção”.
Mais Marielle na Itália
Além de ser lembrada em Rimini, Marielle Franco inspirou pelo menos mais dois centros de atuação no combate à violência contra as mulheres na Itália. Na cidade de Nettuno há um serviço ligado ao governo municipal que tem o nome da brasileira, inaugurado em 2018.
O objetivo é prestar serviço de acolhimento, escuta, assistência e apoio às mulheres vítimas de violência e aos menores vítimas de violência testemunhada.
Serviço semelhante é prestado pela Sportello Marielle, na cidade de Pádua, que nasceu com o objetivo de responder às necessidades específicas de meninas e jovens mulheres entre 18 e 25 anos, que sofrem violência em relacionamentos de todos os tipos, íntimos ou não, para apoiá-las na construção de relacionamentos positivos e livres.
As atividades, assim como as do Centro Antiviolência como um todo, incluiem escuta, apoio psicológico e jurídico, orientação para recolocação profissional e networking com serviços locais, de acordo com as necessidades e trajetória de cada indivíduo. São totalmente gratuitas e mantidas por doações.
Fonte: ICL Notícias